Follow the money: a quem interessa a regulamentação da prostituição?

Qualquer pessoa em Portugal pode ter relações sexuais a troco de dinheiro. E, adivinhem, pode passar recibo. A prostituição em Portugal é legal.

a) A procura de mulheres, raparigas, homens e rapazes pela indústria da prostituição contribui decisivamente para o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual (Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de Maio de 2016, sobre a implementação da Directiva 2011/36/UE);

b) Dados da Comissão Europeia demonstram que a maioria (62%) são vítimas de tráfico para exploração sexual, sendo que as mulheres e raparigas menores representam 96% das vítimas identificadas e presumidas e 80-95% das pessoas que se prostituem sofreram algum tipo de violência antes de entrar na prostituição (violação, incesto, pedofilia), 62% relatam ter sido violadas e 68% sofrem de perturbação de stress pós-traumático — uma percentagem semelhante à das vítimas de tortura (Resolução do Parlamento Europeu, de 26 de Fevereiro de 2014, sobre a exploração sexual e a prostituição e o seu impacto na igualdade dos géneros).

E, não menos importante:

c) Em Portugal nenhuma pessoa prostituída é criminalizada ou judicialmente perseguida, qualquer pessoa se pode prostituir se essa for a sua vontade, nenhum cliente ou “transacção comercial” entre dois adultos por sexo é penalizada e/ou proibida, sendo apenas criminalizado o lenocínio nos termos do artigo 169.º do Código Penal.

Interessa, pois, apurar a quem verdadeiramente interessa a regulamentação (e não legalização) da prostituição. Qualquer pessoa em Portugal pode ter relações sexuais a troco de dinheiro. E, adivinhem, pode passar recibo. A prostituição em Portugal é legal.

Um dos grandes argumentos utilizados é o de que “a maioria escolhe”, “porque gosta e quer” e “não quer ter patrões”, quer ser trabalhador independente. E na verdade já o pode fazer: basta colectar-se nas finanças com o Código de Actividade Económica 1519 – Outros prestadores de serviços.

Face a isto, logo se afirma ser uma questão identitária, de que os “trabalhadores sexuais” querem afirmar-se como tal. Será mesmo este o problema? Podemos falar de várias profissões que não constam em lado nenhum: não há cineastas, designers, curadores: há “outros artistas”. Também na Administração Pública, o Governo PS eliminou em 2009 mais de 1300 carreiras específicas: não há auxiliares de acção educativa, há assistentes operacionais, por exemplo.

Num recibo verde podem mesmo descrever-se os serviços e aí a “trabalhadora sexual” escreve o que lhe apetecer: “trabalho sexual” ou, se o prostituidor-cliente quiser, até pode discriminar o que fez ou deixou de fazer — penetração, sexo oral, masturbação, o que quiser. Até pode colocar no sistema e-factura se bem entender.

Portanto, é uma questão identitária? É uma questão de descontar para a Segurança Social? É uma questão de declarar os rendimentos à Autoridade Tributária? Actualmente, o sistema jurídico português já dá resposta às principais reivindicações da moção da JS. Se o regime de contribuições para a Segurança Social é injusto e não garante a devida protecção social, essa já é uma questão geral, que diz respeito a todos os trabalhadores independentes.

Então, afinal, o que está verdadeiramente em causa? Quais as consequências práticas da regulamentação da prostituição como profissão?

A primeira e principal consequência é a descriminalização do lenocínio. Porquê? Porque existindo esta legislação, automaticamente qualquer pessoa que, por exemplo, tenha um bar ou um apartamento para prostituir não poderá ser penalizado por rigorosamente nada porque se tratará de uma actividade legal. Eu posso ter no meu apartamento 20 ou 30 pessoas que o usam para se prostituírem que, num quadro de regulamentação, não poderei ser penalizada. Mesmo que as esteja a explorar. Será uma actividade como qualquer outra, em que estarei licenciada e serei não uma proxeneta mas uma empresária — porque toda a gente que usa o meu bar ou o meu “estabelecimento” está lá, supostamente, de livre vontade.

Tão pouco poderá ser criminalizado quem angarie clientes para a prostituição, dado que a sua regulamentação determina que é uma actividade comercial ou laboral; assim, a angariação de clientes é parte intrínseca das relações de prestação de serviços. Seria o idêntico a criminalizar um advogado por entregar o seu cartão e fornecer os seus préstimos ou da sociedade, transferindo o seu caso a um colega especialista na área do direito que o cliente procura. Ou seja: dizer a um advogado que seria crime passar o seu cliente a outro advogado da mesma sociedade. Não faz qualquer sentido, pois não?

Tão pouco poderá ser criminalizado quem fomente ou favoreça o exercício por outra pessoa da prostituição, uma vez que, sendo uma actividade regulamentada, é normal que exista publicidade, anúncios, etc. E quem ganha com isto? Quem angaria clientes e quem publicita. Por exemplo, quem coloca um anúncio no Correio da Manhã que, por exemplo, lucrou, em 2009, €4.016.460 (€11.004/dia) e em 2010 a módica quantia de €3.826.295 (€10.483/dia) em anúncios sexuais (conforme dados da deliberação da Entidade Reguladora da Comunicação n.º 39/CONT-I/2010, de 30 de Novembro de 2010).

E depois, claro, há a sublimação da vontade do cliente e a submissão das pessoas prostituídas às leis do mercado. E tal é assim que existem vários sites onde se podem ler todas as ofertas, numa linguagem que talvez a maioria das pessoas prostituídas não considerem tão dignificante. Desde “reserve uma rapariga agora”, a “as mulheres negras parecem mais novas do que realmente são”, ou a “Roménia é um dos países mais pobres da União Europeia. No seu país de origem, as mulheres romenas vivem situações muito difíceis. Atractiva e sexy é a primeira coisa que vem à cabeça de um homem quando pensam sobre as mulheres romenas e gostariam de conhecer umas das mulheres mais bonitas” (na Áustria, 95% das pessoas prostituídas registadas — 8000 — são da Roménia, Bulgária e Hungria; apenas 2% são homens; 73% dos casos de tráfico são para exploração sexual e as nacionalidades das mulheres traficadas são, precisamente, Roménia, Hungria e Filipinas).

E podem classificar-se mulheres como objectos. Desde frias a velhas ou com silicone a mais. Basta pontuar e entrar nos chats online para saber que mulher é de melhor uso. Com direito a aconselhamento especializado — de homens — e dicas onde se paga mais para não usar preservativo: “No Sexihi uma hora é 120 euros e meia hora, 75 euros. No Relaxe podes conseguir uma hora por cerca de 90 euros e uma rapidinha de 15 minutos por 50 euros, também aqui no Relaxe podes pagar mais dez euros para não usar preservativo.”

Em conclusão: basta seguir o dinheiro. Quem paga, quanto quer pagar e para quê — homens, por sexo, nas suas condições e termos. Quem lucra — os proxenetas que deixam de ser criminosos e passam a ser parceiros económicos do Estado, que também lucra, ao passo que se escancaram as portas ao tráfico de pessoas que passa a ser indetectável — afinal, as pessoas prostituídas passam a ter um contrato, estão legais, não há como provar que foram traficadas até porque os seus traficantes deixam de ser chulos e passam a ser empresários.

As mulheres? São objectificadas, classificadas, criticadas, expostas em sites e montras, nalguns países sujeitas a exames de saúde obrigatórios (mas não os clientes) e muito mais vulneráveis a violações, injúrias, espancamentos, maus-tratos. Porquê? Porque fica tudo dentro de quatro paredes, entre duas pessoas, com contrato assinado que afirma que durante um determinado período a mulher é de quem a compra e com ela se pode fazer o que se quiser. Violou? Não, o sexo foi vendido, consentido e o homem, se quiser ser violento, será apenas um risco inerente à profissão. Como qualquer outra? Não. Definitivamente não.

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