Fernanda Câncio está zangada

Sócrates é a prova viva de que é tão estúpido defender de forma acéfala o Correio da Manhã como criticá-lo cegamente. Fernanda Câncio, mais do que ninguém, deveria saber isso.

Fernanda Câncio está zangada com o Correio da Manhã e, de caminho, zangou-se comigo. Num texto ontem publicado no DN – “O Correio da Manhã ou o jornalismo como álibi do crime” – ela atribui-me a seguinte opinião: “O CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho. Pode até financiar-se à custa de vídeos de miúdas a ser abusadas, e ai de quem o atacar por isso: JMT e o CM cá estão para nos acusar de conluio com corruptos e ‘ódio’.”

Aquilo que eu escrevi a este propósito, e que a Fernanda se entreteve a caricaturar no seu artigo, está disponível e pode ser facilmente verificado. Não vou repetir-me. É certo que me espanta que uma jornalista tão boa como ela seja tão pouco rigorosa como o Correio da Manhã, afirmando que a rapariga do vídeo foi “abusada” quando as imagens disponíveis estão longe de permitir tal conclusão. Mas isso apenas demonstra, como já referi inúmeras vezes, que a presunção de inocência só é um princípio absolutamente sagrado quando dá jeito a quem o invoca.

O que eu disse, e repito, é que o caso só adquiriu esta dimensão – chamemos-lhe um ataque sensacionalista ao sensacionalismo – por ter ocorrido no Correio da Manhã, jornal tão odiado por uma certa elite como odiado era o Jornal de Sexta de Manuela Moura Guedes. A certas pessoas mais entusiasmadas apenas faltou exigir que todos os colaboradores do diário da Cofina passassem a usar na rua uma estrela vermelha. Claro que a Fernanda tem queixas justíssimas em relação ao jornal, por causa de José Sócrates e da Operação Marquês. Para além de todas as asneiras, no início do ano passado o Correio da Manhã tomou uma decisão inconcebível – mil vezes mais grave do que a exibição do vídeo –, quando resolveu passar de assistente a acusador e propor que Fernanda Câncio fosse constituída arguida no processo. Foi uma vingança reles e sem desculpa.

Mas há outra razão para a zanga entre ela e o Correio da Manhã, muito anterior à prisão de Sócrates. A sua indignação recua pelo menos até 2009, quando apresentou queixa na Comissão da Carteira por ter sido tratada em certas notícias como “namorada do primeiro-ministro”. A Comissão não lhe deu razão, porque reconheceu a existência de um potencial conflito de interesses nas suas tomadas de posição públicas. A Fernanda, contudo, nunca aceitou tal decisão – em primeiro lugar, defendia ela, estava o seu direito à privacidade. Afinal, dizia-se ontem como hoje, qualquer pessoa de bons modos deve considerar abjecto um jornal andar a meter o nariz na intimidade do primeiro-ministro.

Azar dos Távoras: foi através dos gastos injustificáveis na vida privada de Sócrates que o Ministério Público chegou aos alegados crimes da sua vida pública. Ora, da mesma forma que Fernanda Câncio merece reparação pelos erros que o Correio da Manhã tem cometido, eu ainda estou à espera que ela admita este seu erro fundamental, que tanto a viria a afectar no futuro – a vida privada de José Sócrates, e a dela por acréscimo, eram efectivamente notícia. E aquelas coisas odiosas que só o Correio da Manhã costuma revelar acerca da vida privada dos poderosos – férias opulentas, jantares opíparos, compras luxuosas – são, afinal, um dos pilares fundamentais da Operação Marquês. O público e o privado não se separam com a ponta de um bisturi. Sócrates é a prova viva de que é tão estúpido defender de forma acéfala o Correio da Manhã como criticá-lo cegamente. Fernanda Câncio, mais do que ninguém, deveria saber isso.

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