Eutanásia – a vida sem valor de vida

Qualquer decisão sobre a matéria, no mínimo tem de justificar a realização de um referendo nacional.

"Um doente terminal, com tanta vulnerabilidade e fragilidade, nunca é livre, está muito condicionado.”

Ana Carvalho, investigadora em bioética

 

Apesar de se encontrar consagrado na Constituição da República Portuguesa desde 1989 e ter limites materiais que claramente o distinguem de outros instrumentos de natureza plebiscitária, o referendo nacional, enquanto mecanismo de participação popular direta, não tem beneficiado, entre nós, da simpatia, dos próceres do Estado de partidos.

Com efeito, em quase três décadas, foram apenas também três os referendos nacionais realizados, dois sobre Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e um outro sobre a regionalização.

Nos termos do n.º 3 do artigo 115.º da Constituição, “O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de ato legislativo.”

Significa isto, para o que interessa ao presente debate, que, desde logo, o referendo “só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional”, que essas questões “devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo” e, por último, que a sua decisão se insira na esfera de competência convencional ou legislativa daqueles dois órgãos de soberania.

No que concerne aos limites materiais do referendo, o n.º 4 do referido preceito constitucional indica as “alterações à Constituição” e as “questões ou atos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro”, bem como as matérias previstas nos artigos 161.º e 164.º da Lei Fundamental.

Certo é que, como referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, a “referência ao artigo 161.º carece de alguma acomodação, pois não pode por natureza abranger as alíneas c) e o), que estabelecem as competências genéricas da AR” (in CRP Anotada, II Vol., 4.ª ed. rev., Coimbra Ed. 2010, pág. 104), sendo que naquela se determina que ao Parlamento compete “Fazer leis sobre todas as matérias”.

Daqui decorre que, desde que não vise alterar a Constituição e se contenha nos limites da reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República, o referendo consagrado no nosso ordenamento jurídico-constitucional poderá incidir sobre matérias respeitantes a direitos, liberdades e garantias.

Relacionando-se a problemática da eutanásia diretamente com o direito à vida, consagrado no artigo 24.º da Constituição, não oferece dúvida de que qualquer iniciativa referendária deverá, obrigatoriamente, cingir-se à margem de discricionariedade do legislador ordinário, conforme é, aliás, jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão n.º 288/98), resultando, por isso, falacioso pretender que a matéria, em si mesma considerada, não seria passível de referendo.

Ademais, propugnar o contrário equivaleria a defender-se a inconstitucionalidade dos dois referendos que ocorreram no nosso País sobre a IVG, tese não acolhida, já por duas vezes, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.

Com efeito, no seu Acórdão n.º 617/2016 sustenta-se que a “margem de liberdade [do legislador] não está vedada em nome do reconhecimento de direitos insusceptíveis de ser objecto de referendo. Com efeito, não seriam esses direitos, em si, objecto do referendo, mas antes uma ponderação sobre um conflito de direitos e valores ou a possível solução para um tal conflito em conexão com a intervenção do Direito Penal.” E o mesmo Acórdão prossegue, esclarecendo que “nada impede que uma matéria de conflito de direitos e valores constitucionalmente protegidos – ou até mesmo de concretização de limites imanentes, que implique a concordância prática dos mesmos direitos e valores – possa ser devolvida por um dos seus intérpretes – o legislador da Assembleia da República – para o voto dos cidadãos, em certas circunstâncias.”

Já no que respeita à questão substantiva, qual seja a de saber que formas de eutanásia estão na disponibilidade, quer do legislador ordinário quer de uma consulta popular, os já citados autores são conclusivos: “Jurídico-constitucionalmente, não existe o direito à eutanásia ativa, concebido como o direito de exigir de um terceiro a provocação da morte para atenuar sofrimentos ('morte doce'), pois o respeito da vida alheia não pode isentar os 'homicidas por piedade' (…). Relativamente à ortotanásia ('eutanásia ativa indireta') e eutanásia passiva – o direito de se opor ao prolongamento artificial da própria vida – em caso de doença incurável (…), podem-se justificar regras especiais quanto à organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal ('direito de morte com dignidade'), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qualquer direito de abstenção de cuidados em relação aos pacientes (…). A Constituição não reconhece qualquer 'vida sem valor de vida', nem garante decisões sobre a própria vida” (in CRP Anot., I Vol., 4.ª ed. rev., Coimbra Ed. 2007, pág. 450).

Significa isto que o nosso ordenamento constitucional apenas consideraria legítima uma decisão legislativa ou referendária que incidisse sobre a eutanásia passiva ou ortotanásia e nunca sobre qualquer forma de eutanásia ativa. Esta última eventualidade simplesmente violaria a Lei Fundamental.

Acresce que ninguém duvidará que uma matéria como uma hipotética despenalização da eutanásia divide transversalmente os eleitores, independentemente das escolhas partidárias destes, encontrando-se, por isso, entre aquelas que mais justificadamente convidam à participação política direta dos cidadãos. Neste sentido, “O referendo pode incidir sobre questões axiologicamente controversas e alheias a um consenso social” (in Comentário à CRP, III Vol. 1.º Tomo, Ed. Almedina, 2008, pág. 369).

Encontrando-se uma eventual despenalização da eutanásia numa das situações referidas, justifica-se, pois, uma reflexão serena e esclarecedora na sociedade portuguesa, conquanto a mesma não seja contaminada por qualquer perversa incapacidade de resposta dos serviços de saúde para cuidar de doentes terminais, designadamente ao nível dos cuidados paliativos.

Vale a este respeito a pena recordar o Parecer 11/CNECV/95, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre aspectos éticos dos cuidados de saúde relacionados com o final da vida, no qual se concluiu que, sendo “ética a interrupção de tratamentos desproporcionados e ineficazes”, “não há nenhum argumento que justifique, pelo respeito devido à pessoa humana e à vida, os atos de eutanásia” e que “a aceitação da eutanásia pela sociedade civil, e pela lei, levaria à quebra da confiança que o doente tem no médico e nas equipas de saúde e poderia levar a uma liberalização incontrolável de “licença para matar” e à barbárie”.

Ao que acaba de se referir acresce que nenhum partido que obteve representação parlamentar nas eleições legislativas de Outubro de 2015 propôs a despenalização da eutanásia. Com efeito, compulsando os seus diversos programas eleitorais, em nenhum se vislumbra o compromisso de apresentar uma iniciativa legislativa despenalizadora de qualquer prática de eutanásia, já que o único que a esta se referiu, e no domínio da democracia meramente participativa, foi o PAN – Pessoas, Animais e Natureza, ao preconizar a criação de “fóruns de discussão e abrindo o debate sobre a legalização da Eutanásia em Portugal.”

Ora, criar fora de discussão e abrir o debate em nenhum caso se confunde com a apresentação de projetos de lei visando despenalizar a eutanásia, razão pela qual a propositura de uma iniciativa legislativa com esse propósito fragilizaria ainda mais a já escassa confiança que os cidadãos atualmente têm na democracia representativa e na unilateralidade política e parlamentar de conveniência meramente circunstancial.

Eis porque, defenderei sempre que os Portugueses nunca poderão deixar de ser chamados a pronunciar-se em referendo sobre qualquer iniciativa visando a despenalização da eutanásia no nosso País. Quem assim o não pensar sobre uma questão tão delicada, complexa e fautora dos mais graves dilemas de consciência, e relativamente à qual, para mais, nunca o eleitorado se pronunciou, ultrapassa, a meu ver, a fronteira da legitimidade política e revela apenas receio da soberana vontade popular.

Tudo isto com a coerência de considerar que a vida sem valor de vida é uma matéria muito complexa e controversa. E como diz, sabiamente o nosso povo, a morte é o único problema para o qual não existe tratamento. E como tema civilizacional, onde a própria ciência se divide moral e eticamente, enquanto católico defensor da vida, não concordo com a eutanásia.

Qualquer decisão sobre a matéria, no mínimo tem de justificar a realização de um referendo nacional.

Licenciado, mestre, doutorando em Direito e Presidente da Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social

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