Ética e Demência: Hoje os nossos avós, amanhã seremos nós!

Em 2015 nasceram 85.500 crianças – 24% destes rapazes e 34% destas raparigas vão desenvolver demência ao longo das suas vidas.

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RUI GAUDENCIO

Em 2015 nasceram 85.500 crianças (1) – 24% destes rapazes e 34% destas raparigas vão desenvolver demência ao longo das suas vidas (2).

O número de pessoas mais velhas continua a aumentar em todo o mundo e a perspectiva é de que a população com demência venha a duplicar a cada 20 anos. Por outras palavras, estamos a viver mais anos e, por isso, somos mais vezes confrontados com o declínio do funcionamento mental (cognitivo) – com alterações da memória, do pensamento ou do comportamento.

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A demência e as suas consequências fazem, hoje, parte de uma realidade incontornável que se instalou nas nossas casas, nos locais de trabalho, nos espaços públicos e, também, nos espaços legislativos (o Governo e o Parlamento).

Alzheimer é uma palavra cada vez mais fácil dizer, mas, nem por isso, mais fácil de viver. 

Vemo-nos, agora, obrigados a expressar opiniões sobre a vulnerabilidade e a dignidade, a preparar o nosso futuro individual e social (em sociedade), e a reafirmar a importância de legislar sobre os cuidados no final da vida.

Uma nova ética

O raciocínio moral (valores culturais) e a ética (princípios universais) são chamados a responder, talvez como nunca, ao desafio da incerteza e da heterogeneidade que envolve a pessoa mais velha com demência.

Contudo, o “principalismo” clássico da biomedicina, com enorme influência na ética geriátrica, já não serve à realidade da demência, uma vez que o seu maior argumento assenta no respeito pela autonomia (capacidade de decisão), comprometida pela própria doença.

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Neste contexto, nem os restantes princípios clássicos – beneficência, não maleficência e justiça (3) – parecem escapar à revisão crítica.

As mudanças são por demais evidentes. Passámos do “acto único” a um “processo de cuidados” (continuados). Valorizamos mais a “atitude” que o “acto”. Discutimos mais os “cuidados do dia-a-dia” que a “vida e a morte”. Os cuidados “médicos” foram atribuídos a “equipas de saúde”. O próprio contexto clínico, assente na “relação médico-doente”, viu-se substituído por um contexto, mais alargado, institucional e social.

Mas é na subliminar passagem do “doente competente” ao “doente incompetente” que se encontra o maior desafio. É aqui que surge a abordagem de interesse crítico sobre a autonomia do “eu actual”, provável e legitimamente diferenciado do “eu anterior”.

Na prática, os princi´pios e´ticos elementares, que pretendem ser resolutivos e esclarecedores da pra´tica moral, ficam ainda mais comprometidos por não podermos desvalorizar a capacidade de escolha actual, face à anterior. Pois, na vida, todos temos o direito a mudar de opinião.

Veja-se, aqui, as implicações reais para a aplicação do testamento vital ou, em particular, para o cumprimento da eutanásia: o que devemos respeitar, a decisão do “eu actual” ou a decisão do “eu anterior”?    

Vulnerabilidade e dignidade

Na realidade, são as vivências que melhor servem o enquadramento ético, familiar e clínico da demência.

É fundamental lidar com o que acontece, com as experiências concretas (abordagem indutiva), em vez de construções abstractas (abordagem dedutiva do “principalismo”). Sem esta investigação, empírica e qualitativa, jamais poderemos fazer ouvir as “vozes silenciosas”, compreender as experiências de todos os envolvidos e, acima de tudo, conhecer a verdadeira vulnerabilidade (individual, transversal e colectiva).

É certo que a vida humana se caracteriza por uma vulgar vulnerabilidade, uma vez que nos encontramos todos limitados pelas nossas capacidades. Contudo, a condição de demência produz mais que uma vulgar vulnerabilidade, assumindo-se objectivamente em todas as dimensões do ser – físico, psicológico, relacional, social, moral e espiritual.

Podemos assumir que a vulnerabilidade é a raison d’être dos cuidados: é nela que nos motivamos a agir e é nela que emerge o raciocínio moral, a necessidade ética.

Talvez por isso, se tenha tornado comum dizer que a essência ética dos cuidados à demência tem por princípio a resposta à vulnerabilidade e por fim a manutenção, protecção e promoção da dignidade da pessoa.

A dignidade carece, no entanto, de um padrão normativo que procure responder não só à vulnerabilidade, mas também a todo um conjunto de lógicas culturais. Na verdade, “porque havemos de nos preocupar com as pessoas com demência? O que conta para os bons cuidados à demência”?

É o enquadramento antropológico (cultural) que nos permite invocar e descrever a visão subjacente dos cuidados – i.e. conhecer o propósito e a abordagem que a sociedade privilegia (“individual ou relacional”).   

Em todo o caso, independentemente dos padrões normativos, a dignidade humana pode sempre ser observada e respeitada, quer pela sua natureza imutável, quer pela sua natureza dinâmica.

Por um lado, a dignidade que todos partilhamos e que nunca pode ser perdida, por ser fundamental e intrínseca à condição humana. Por outro, a perspectiva dinâmica da dignidade que reforça a já descrita necessidade de atender às experiências de vida (subjectivas e diferentes de pessoa para pessoa) e o respeito pela nossa identidade – as características positivas que cada um pode cultivar… mas, que tal como o nosso “eu”, são livres de mudar ao longo do ciclo de vida.

(1) Instituto Nacional de Estatística (2016). Estatísticas Vitais, 2015.

(2) Maignen, F (2016): Estimation of future cases of dementia from those born in 2015: updated analysis using CFAS II study; Consultation report for Alzheimer’s Research UK.

(3) Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2012). Principles of biomedical ethics (7th ed.). New York, NY: Oxford University Press.

CINTESIS - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto

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