Etecétera e tal

Parque Infantil das Angústias!, exclama o meu amigo mais parecido com o Camilo Pessanha, perto da uma da manhã, agora, ontem, esta última quarta-feira de Fevereiro em Lisboa. Porque certo Verão nos Açores ele resolvera alugar uma scooter na Horta e antes de enfrentar uma horda de vacas topou com o nome: Parque Infantil das Angústias. Uma noite, noutro Verão, nos Açores, topei com um coração em relevo entre duas torres, vermelho, carnudo, e alguém me disse que aquela era a Igreja das Angústias. A igreja deu o nome à freguesia que deu o nome ao parque infantil. Há-de estar certo, brincar nas Angústias tu-cá-tu-lá, saber desde sempre que a solução de quarta-feira não será a quinta.

2. Abrindo o livrinho que fui buscar nesta mesma quarta-feira, acabado de compor em caracteres móveis, tácteis, leio isso de outra forma, essa guerra que é o hoje no hoje, também conhecida como a puta da alegria.

Que importa pois
a Terceira Mundial
se nós os dois
etecétera e tal?

3. Lisboa, esta quarta-feira: subo a calçada para ir buscar o livrinho e o eléctrico diz Prazeres. Azulejos brancos e azuis sobram nas fachadas com a ortografia que lhes é contemporânea: Merciaria. Jarros de frésias frescas como as que há dias levei para a vizinha de baixo me perdoar as molas de roupa que deixo cair no quintal dela, molas lassas compradas no chinês, já não sei se o de cima se o de baixo porque os chineses, hoje, são nossos contemporâneos em qualquer ângulo, e também para os vizinhos de cima por me terem deixado a casa onde agora moro, eles a subirem para o segundo andar quando o vizinho do segundo partiu e eu a entrar para o primeiro, assistindo à descida dos caixotes que por acaso eram de um amigo que está no Brasil, e nem eu nem ele sabíamos disso quando aqui cheguei.

4. Lisboa é um quintal. Mas maior do que o quintal que o Rio de Janeiro é, do Flamengo ao Leblon, digo perante as minhas duas amigas cariocas que agora moram em Lisboa. Não, não, dizem elas, o quintal no Rio é maior. OK, mas Lisboa tem mais espécies, contraponho. Isso sim, admitem. Mas talvez eu só quisesse dizer mais espécies entre a angústia e a alegria, com o barco sempre torto, a afundar para o lado esquerdo.

Foto
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5. Volto à esquerda na calçada, já com o livrinho debaixo do braço, agora em busca de salvação para duas fotografias maltratadas de todas as andanças, incluindo anos de mofo no Cosme Velho. Então, emergindo da sua oficina, uma velha mestra anota o meu telemóvel à mão numa caligrafia contemporânea da merciaria. Vai bem com o meu livrinho, assinado por quem se mantém sem telemóvel e chama livrinhos aos livros, menos o seu, porque não passava de uma brincadeira até o desenhador da capa ter feito descair o Pessoa do Almada, aquele Pessoa sentado à mesa de cigarro na mão, cuja mão agora tomba numa borracheira descomunal. Não fora a capa (Luís Henriques) e a vontade do editor (50 KG) e não haveria livrinho, diz o autor, de seu nome Vítor Silva Tavares. Chamou-lhe Púsias, o que parece uma mistura do verbo pôr com um herói grego.

6. Olho este Pessoa quase abstémica de andar a antibiótico, e oitenta euros mais leve, que foi o que paguei por uma consulta de dermatologia, previamente impaciente de esperar na Urgência do São José que me mandassem para os Capuchos. Depois vou à EDP mudar o contrato da luz para o meu nome e tenho vinte-e-uma senhas à minha frente, o que dá tempo bastante para um ancião vomitar no canteiro em frente à porta, e um cidadão na força da idade quase ter uma apoplexia à espera que outro ancião acabe de contar todas as maleitas da sua vida ao assistente da EDP a quem calhou estar junto às senhas para esclarecer os clientes. O assistente, que tem acne mas não terá oitenta euros para uma consulta, ouve, gentil, enquanto aumenta a fila de espera para tirar senha e ficar em fila de espera. Tentando distrair o senhor da apoplexia pergunto-lhe, desculpe, e a EPAL, onde é?

7. Sou uma emigrante amnésica, faço perguntas destas. Tanto pasmo com o que entretanto aconteceu, género escaravelho-vermelho das palmeiras, como com o que sempre esteve lá e eu nunca vi. O amigo que me fez levantar os olhos para as palmeiras leva-me às árvores da borracha daquele largo ao cimo da Rua de São Bento, descomunais, catedrais. Mesmo nas imediações há palmeiras mortas. O escaravelho é totalmente monogâmico, só come palmeiras.

8. Mas eis que descendo a Rua das Flores, rumo à tasca onde comerei a melhor perna de borrego da minha amnésia, as duas palmeiras do largo dos bombeiros continuam vivas e divergentemente oblíquas.

9. Tascas: ando à caça delas a contracorrente destes novos estabelecimentos onde tudo, a começar pelo nome, é qualquer coisa português. Tascas daquelas com polvos na montra, onde não seja preciso pedir três pratos, como diz a minha correspondente na gastronomia que agora é preciso em toda a parte. Tascas onde um prato dá para três, ou para três dias, e ainda pagamos, por junto, menos de trinta euros, além de podermos encontrar ao almoço os livreiros a quem reservamos livros impressos em caracteres móveis. Hoje é contemporâneo de tudo ao mesmo tempo, uma decisão, como o amor.

10. Voltando à última quarta-feira de Fevereiro, a que vai terminar com a lembrança do Parque Infantil das Angústias: desço a calçada ao lusco-fusco, ainda com o livrinho e já deixadas as fotografias na oficina, e só agora, ao fim de quase um mês a morar aqui, vejo que da minha porta a Basílica da Estrela se acende por cima do Parlamento. Então uma vizinha diz da varanda:

— Há que fazer pela vida…
E da varanda em frente a outra responde:
— Graças a Deus…
Casas que dão para casas, como espelhos, em que as frases acabam sempre em reticências, e quinta-feira será a solução de quarta se deus quiser.

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