Há quem enfrente ilegalidades quando muda de sexo no Registo Civil

Especialistas credenciados, de quem depende o reconhecimento legal, condicionam o processo à realização de tratamentos hormonais e o grau de masculinização ou feminização que não são critérios previstos na lei.

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Nelson Garrido

Os resultados de um estudo apresentado esta quinta-feira no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa apontam para a necessidade de rever a lei que permite a mudança de sexo no registo civil, a chamada lei de identidade de género.

Embora inquéritos feitos no âmbito deste trabalho a perto de sete dezenas de transexuais e transgénero tenham revelado que a lei criada em 2011 trouxe mudanças altamente positivas às suas vidas, ao substituir o anterior processo judicial, que implicava a ida a tribunal, por um processo administrativo, a obrigatoriedade de os requerentes se submeterem a especialistas em sexologia clínica que comprovem a existência de uma perturbação de identidade de género não é de todo pacífica. Activistas de diversas organizações presentes na conferência do ISCTE reclamaram a abolição deste requisito, devendo as conclusões finais do estudo, que só serão conhecidas no final de Abril, apontar também nesse sentido.

O objectivo da equipa académica liderada pela investigadora e psicóloga Carla Moleiro, que fez uma parceria com a ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, era precisamente avaliar o impacto que a lei teve em Portugal. Quando surgiu, não havia nada de semelhante na Europa. Mais de quatro anos passados, verificou-se que há profissionais de saúde que fazem, a quem quer mudar de sexo no registo civil, exigências que não constam da lei.

“Alguns profissionais fazem depender o seu reconhecimento legal de critérios que se estendem para além do diagnóstico – tal como a realização de tratamementos hormonais ou o grau de ‘masculinização’/’feminização’”, pode ler-se no estudo, que incluiu entrevistas a médicos e psicólogos que fazem parte da pequena lista credenciada para avaliar este tipo de alterações. Uma psicóloga reconhece que a equipa que integra só dá o ok que permite ao requerente mudar de nome e de sexo no registo civil quando está “clinicamente satisfeita” com a “adaptação às hormonas”. Outro psicólogo igualmente credenciado segue o mesmo caminho: “Se começam a terapia hormonal (…) o ideal era que durante o primeiro ano não mudassem de nome. Mas eles muitas vezes é ‘Não, não. Quero mudar já o nome’. Não podemos facilitar a vida a estas pessoas. Não é um castigo. É importante que sintam essas dificuldades. Isso é uma coisa terapêutica que nós usamos”. Por isso, há quem espere três anos por um relatório clínico atestando a perturbação de género.

O mesmo profissional de saúde vai mais longe: “Há pessoas que aparecem aqui e dizem ‘Sou transexual, quero mudar de nome’. Depois não são e nós não passamos [o relatório] e ficam muito zangados. São travestis, doentes mentais”.

Mesmo assim, metade dos profissionais de saúde entrevistados mostraram-se favoráveis ao afastamento dos médicos do reconhecimento legal da identidade de transsexuais e transgénero – tal como já sucedeu na Argentina, na Dinamarca, em Malta e na Irlanda. Chamam-lhe o princípio da autodeterminação - que, segundo os autores do trabalho do ISCTE, vai de encontro às recentes mudanças no paradigma clínico internacional, que limitam os diagnósticos sobre quem quer mudar de género no registo civil à descrição de uma experiência de sofrimento clinicamente relevante, e não à sua identidade.

O principal especialista de sexologia da Ordem dos Médicos, Pedro Freitas, vê apenas um senão na despatologização: “No dia em que for feita os Estados podem facilmente desobrigar-se de qualquer tratamento destas pessoas, uma vez que não podem tratar quem não tem doenças. Nessa altura quem os opera? Quem lhes prescreve a terapia hormonal?”. Tanto Pedro Freitas como  o bastonário dos médicos garantem nunca lhes terem chegado aos ouvidos as exigências ilegais de que se falou no ISCTE.

Seja como for, para muitos dos ali presentes, como Miguel Vale de Almeida, esta é, de qualquer forma, uma oportunidade quase única para alterar a lei, dado o vasto consenso que, no seu entender, existe entre as organizações que representam estas comunidades e responsáveis políticos.

Prevenir a violência doméstica

A secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, anunciou que vai lançar em Lisboa, em parceria com a ILGA – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, um projecto-piloto para ajudar as vítimas de violência doméstica neste tipo de contexto, cujas características podem diferir das do fenómeno quando ele ocorre em contexto heterossexual. Quanto às reivindicações dos activistas no sentido de o Governo alterar a lei que permite a mudança de sexo no registo civil, deixando de submeter os requerentes a exames por uma equipa de especialistas clínicos, a governante não se comprometeu. Disse apenas que estudos como aquele que foi apresentado esta quinta-feira no ISCTE são muito importantes para informar os decisores políticos do estado das coisas. 

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