Entre a Singapura cívica e a desproporção no protesto

Até onde é legítimo fundar reivindicações de carácter sindical ou posições exclusivamente corporativas na ameaça a interesses colectivos fundamentais?

Os últimos dias têm apresentado um panorama que merece que nos detenhamos um pouco sobre este tema. Até onde é legítimo fundar reivindicações de carácter sindical ou posições exclusivamente corporativas na ameaça a interesses colectivos fundamentais? Em especial quando estão em causa prestações profissionais exclusivas de determinadas classes e que se ligam a princípios ou instituições de primeira linha, como o funcionamento do processo democrático, o sistema de saúde público ou a segurança e a defesa nacionais?

De que falo? Do facto de juízes ameaçarem a realização nos termos definidos de um acto eleitoral, as próximas eleições autárquicas, pela realização de uma greve. Do facto de enfermeiros especialistas fazerem greve à sua participação na realização de partos. Do facto de oficiais das Forças Armadas pretenderem a dado momento marchar fardados e depor armas junto ao Palácio de Belém em protesto contra medidas que favorecem a investigação de um crime, para mais um crime que só pode envergonhar – e preocupar – as Forças Armadas, o Governo e o País.

Parecendo factos avulsos e autónomos entre si, lidos em conjunto tornam-se extraordinariamente próximos (já para não falar, por exemplo, de comportamentos impróprios de elementos da GNR numa cerimónia ainda no último mês de Maio). No coração do Estado – não é isso o exercício da justiça, o funcionamento do SNS ou a confiança nas Forças Armadas? –, parece que, no mínimo, falta algum sentido de proporção no que deva ser reclamar direitos, sejam eles devidos ou não.

Não que apenas se admita uma espécie de protestozinho disciplinado, dentro de limites, curtos, do devido, uma espécie de indignação previamente encomendada e definida, dentro da escala do permitido, numa espécie de Singapura cívica, expressa em timbre adequado. O direito à greve e o direito ao protesto e à resistência contra o que se possa sentir como injustiça são duas dimensões identitárias da nossa vivência comum. A greve continua a significar de forma clara um sentido de crítica e de insubmissão e a funcionar como uma forma de pressão legítima sobre o decisor político a que é dado um especial significado, até porque representa também um sacrifício, desde logo financeiro, para os trabalhadores em causa.

Mas como conciliar esta liberdade de descontentamento com a protecção também devida ao interesse público em circunstâncias que são, mesmo quando habituais, de especial relevo, como um acto eleitoral ou o nascimento em segurança de alguém?

Estamos aqui para além da formulação jurídica dos “serviços mínimos”. Está em causa a própria determinação e delimitação do objecto que deva simbolizar a crítica, a pressão, o descontentamento. Até para enobrecer o protesto e não o banalizar ou amesquinhar. Esse será também um dever de quem protesta. Nesse sentido, não vejo como possam aqueles comportamentos concretos favorecer cada uma das classes do serviço público acima mencionadas, nomeadamente na percepção pública do que é o seu papel, o seu mérito ou a injustiça de que se sentem vítimas.

Pode ser injusto, mas aquilo que passa é a ideia de que a sua reclamação será afirmada a qualquer custo e quanto mais elevado e disseminado este for, melhor. Lerão muitos, portanto: com profundo desprezo pelos concidadãos afectados pela sua greve ou manifestando total indiferença pelas consequências públicas do seu protesto.

Creio até que a vitória eleitoral do PSD/CDS em Outubro de 2015 se explicou em boa parte pela animosidade e desconfiança que foi possível criar progressivamente em relação aos servidores públicos, vistos crescentemente pelo sector privado, de forma mais despudorada entre 2011 e 2015, como figuras caracterizadas pelo abuso nos seus direitos “especiais”, fosse isso ou não verdade – e estou convencido de que não o é de forma generalizada – e que seria necessário portanto “normalizar”. Nessa medida, se o período 2011-2015 para os funcionários públicos representou reduções e cortes diversos, para muitos outros foi um tempo afinal de uma recomposição justiceira dos recursos existentes e dos direitos devidos.

Ora, tomadas de posição deste género, que facilmente se confundem com soberba perante quem se sente já discriminado, apenas facilitam aquele discurso e aquele ambiente cívico amesquinhado, ele sim verdadeiramente compressor de direitos profissionais e de prestações públicas de qualidade.

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