Em Portugal, a falta de autonomia dos adolescentes “é algo assustadora”

Entrevista a Margarida Gaspar de Matos a propósito do novo estudo da Organização Mundial de Saúde: a família, que os portugueses tanto prezam, dá afecto e apoio, mas os “pares”, sublinha, são essenciais para aprender a negociar, a debater e a descobrir o mundo.

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Margarida Gaspar de Matos: "Quando há 'apenas' laços fortes há, em geral, pouca dissonância e debate de ideias (vamos pouco além das discussões do dia-a-dia sobre a gestão da casa)" Enric Vives Rubio

Os adolescentes portugueses estão menos com os amigos, depois da escola, quando comparados com os de outros países. E saem menos à noite. Isso é bom, ou significa que estão demasiado presos às saias da mãe? Com que impacto no seu crescimento? Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e investigadora, da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, que coordena a parte portuguesa do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), da Organização Mundial de Saúde (OMS), responde a algumas perguntas suscitadas pelo mais recente relatório internacional sobre a adolescência, divulgado nesta terça-feira de manhã.

Segundo o HBSC, Portugal é o país, em cerca de 40, onde os jovens de 11, 13 e 15 anos menos estão com amigos depois das oito da noite. Isto é bom ou mau? Significa o quê?
Temos uma cultura muito ligada à família e pouco ligada a “grupos de amigos”. Por outro, temos das maiores cargas de aulas e de TPC (trabalhos para casa) da Europa. E, por outro ainda, há agora a Internet que deixa os jovens mais “voluntariamente” em casa... se, por um lado, as saídas à noite estão associadas a riscos (consumos, por exemplo), por outro lado esta falta de autonomia é algo assustadora.

Que indicadores nos estudos revelam essa “falta de autonomia algo assustadora”?
Neste estudo temos dados, por exemplo, sobre a frequência com que os adolescentes jantam com a família — somos dos que mais o fazemos. Ou sobre sair à noite com os amigos — somos dos que menos o fazemos. Estudos anteriores mostravam que em Portugal os jovens não se envolviam em actividades de voluntariado, associativismo. E temos a tal imensa carga horária dos jovens portugueses na escola, que outros estudos, ainda, demonstram.

Na rede [de peritos do] HBSC falamos muito disto: há países (nórdicos) onde os jovens em geral saem de casa dos pais quando acabam o secundário, ficam entregues a si próprios, arranjam um part time para se auto-financiar, pedem um empréstimo para estudar... estas práticas não são comuns entre nós e os jovens ficam dependentes dos pais até bem depois da sua maioridade.

Os estudos em geral confirmam que, salvo em casos extremos, é bom termos uma família e apreciarmos ter tempo de qualidade para a família, mas também (salvo casos extremos) é bom termos amigos, tempo livre para os amigos e irmos construindo a nossa autonomia. A família dá no início uma estrutura, mas entre amigos gera-se “a geração”. Ambos são necessários.

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Sermos dos que mais jantam com a família é “bom”, se isso for indicador de coesão familiar e alimentação saudável, mas já não é tão “bom” se for indicador de que os jovens não conseguem estar sem a família. Do mesmo modo, estar com os amigos fora de aulas é “mau” se ficar associado as lutas, aos consumos e ao insucesso escolar; mas já não é tão “mau” se significar autonomia, amigos pessoais, interesses vocacionais ou de lazer partilhados... Há um sociólogo (Granovetter) que (em 1983, imagine) escreveu um trabalho chamado a importância dos laços fracos (“weak ties”). O racional é que na nossa rede de contactos sociais/o nosso capital social, temos laços fortes com um número reduzido de pessoas — pais, filhos, esposos, etc. — e laços fracos com um número mais extenso de pessoas. Os laços fortes dão-nos afecto e apoio, mas os laços fracos são importantes para nos “abrir ao mundo”, para construirmos a nossa “diferença” face à família e ao nosso grupo restrito, para nos tornarmos “tolerantes à diferença” e até curiosos sobre o mundo.

Os laços fortes não chegam.
Quando há “apenas” laços fortes há, em geral, pouca dissonância e debate de ideias (vamos pouco além das discussões do dia-a-dia sobre a gestão da casa). São os nossos laços fracos que nos fazem questionar os nossos valores e as nossas crenças. Claro que os laços fracos podem fazer perigar a nossa “boa educação”, mas a falta de laços fracos dificulta a evolução das ideias e, em última análise, pode perpetuar, por exemplo, o preconceito, a xenofobia... Alem disso o “treino” de debate entre pares constrói-se com estes laços fracos e facilita o aparecimento de jovens com capacidades de negociação, de debate, de resolução de conflitos, que muitas vezes em relações “verticais”, como as da família, não são privilegiados....

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Margarida Gaspar de Matos: "Quando há 'apenas' laços fortes há, em geral, pouca dissonância e debate de ideias (vamos pouco além das discussões do dia-a-dia sobre a gestão da casa)" Enric Vives-Rubio

No estudo, os adolescentes portugueses aparecem em pior posição do que os de outros países no que diz respeito aos níveis de “satisfação com a vida”, aos 13 e 15 anos. Mas, em relação a outros sintomas de saúde mental e física (como ter dores de cabeça, de estômago, dormir mal, etc), não estão tão mal como os jovens de outros países. Como se enquadra isto?
Pois, diz bem: posso adiantar apenas enquadramentos ou interpretações, estes estudos “transversais” não nos permitem identificar causas. Adianto a minha leitura. É nos mais velhos (13 e 15) que ocorre a pior posição na “satisfação com a vida” e é nos mais novos (11 e 13) que menos ocorrem os chamados sintomas múltiplos. Penso que a recessão que atolou o país desde 2010 pode estar associada à falta de satisfação com a vida. Temos outros dados em Portugal [recolhidos através de questões que nem todos os países aplicaram no inquérito, pelo que não constam dos resultados do relatório final da HBSC/OMS] que apontam para um aumento dos jovens que se auto-lesionam em Portugal, dos que dizem que “estão tão tristes que não aguentam” e dados também que mostram uma diminuição das expectativas em relação ao futuro. Estas questões, associadas à (falta de) saúde mental, formam um dos grandes problemas detectados pelo nosso estudo nacional.

Há algum tempo, numa entrevista ao PÚBLICO, a Candace Currie, a ex-coordenadora internacional do HBSC, disse que estava preocupada com a saúde mental das meninas. Também está?
Sim, eu e a Candace e mais alguns investigadores do HBSC temos um grupo a estudar exactamente as diferenças de género. As meninas tradicionalmente “internalizam” e aparecem com mais preocupações, com menos confiança, com menos satisfação com a vida, com menor percepção de qualidade de vida, com mais sintomas,  com mais preocupações pela imagem do corpo. Como se o “glass ceiling” estivesse já na adolescência e as meninas andassem sempre stressadas a tentar “provar algo” para sua afirmação pessoal. Este stress aparece com mais força após a puberdade e, portanto, poderá estar associado a alterações hormonais (e respectiva leitura cultural claro). Já quis estudar isto a fundo mas ainda não consegui o apoio financeiro respectivo. Talvez este ano.

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