Em nome do pai

Mentir às autoridades pode não ser crime e em Guimarães a Rute safou-se ...

O João conduzia o seu veículo pela estrada como de costume. Não tinha carta de condução, mas isso não o incomodava. Mas, desta vez, a vida não lhe correu bem e muito menos ao José, que ia calmamente na sua mão a conduzir uma motorizada e que viu o João subitamente aparecer-lhe pela frente. Tentou desviar-se, mas não conseguiu e embateu no automóvel do João. Pouco tempo depois, o José era mais um número na estatística dos mortos nas estradas de Portugal.

O João assustou-se e a filha Rute, que ia ao seu lado no automóvel, logo se ofereceu para figurar como a condutora e assim se apresentou perante as autoridades policiais, enquanto o seu pai, discretamente, se ausentava do local do acidente.

A Rute ficou a constar da participação do acidente de viação como sendo a condutora e forneceu todos os seus elementos de identidade ao agente da GNR, bem como prestou as declarações e informações sobre o modo como o acidente ocorrera e, sem hesitação, submeteu-se ao teste de alcoolemia que se revelou absolutamente negativo.

Mas a tramóia familiar veio a saber-se e para além de o João ter sido julgado pelo crime de homicídio por negligência, a Rute sentou-se no banco dos réus para responder pelo crime de falsificação de documentos. Durante o julgamento, o tribunal concluiu que não fazia sentido a acusação da prática do crime de  falsificação de documento e optou por a substituir pela acusação do crime de falsas declarações que está previsto na lei nos seguintes termos: Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções: identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

E o tribunal condenou-a na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de seis euros. Mas o Ministério Público não concordou com a condenação e recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Para o Ministério Público, fiscal da legalidade, o tribunal tinha aplicado incorrectamente a disposição legal que prevê e pune o crime de falsas declarações. E explicava porquê: no caso em apreço, a Rute mentira sobre um acontecimento concreto da vida, balizado com precisão em termos de tempo e espaço — o facto de ir a conduzir um determinado automóvel, nas circunstâncias de tempo e lugar constantes do processo, isto é, no momento e no local da colisão entre o veículo automóvel e o motociclo. A Rute não mentira quanto aos seus elementos pessoais, nomeadamente, sobre a sua identidade, o seu estado ou as suas qualidades; também não mentira quanto ao seu nome, data de nascimento, estado civil ou quanto a ser ou não titular de licença de condução.

É certo que a lei enquadrava também no crime de falsas declarações as declarações falsas quanto a outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, mas a qualidade aí reportava-se a uma função, condição, título ou categoria duradouros, o que não era o caso de ir a conduzir aquele veículo naquela altura concreta.

As juízas desembargadoras da Relação de Guimarães Alda Tome Casimiro e Paula Maria Roberto, no passado 23 de Janeiro, chamadas a apreciar o caso, também consideraram que alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação, não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos e, em consequência, decidiram absolver a Rute, que, pelo menos e bem, não foi punida, pelo seu sacrifício em nome do pai.

Tivesse a Rute sido julgada no Sul do país e o recurso ido ao Tribunal da Relação de Évora provavelmente seria condenada e não absolvida. Em 16 de Junho de 2015, os juízes desembargadores Maria Leonor Esteves e António João Latas tiveram entendimento diferente: num caso de um acidente em que o condutor ia alcoolizado e em que o passageiro, sóbrio, assumiu a qualidade de condutor na participação às autoridades, consideraram que ambos, verdadeiro condutor e falso condutor, teriam praticado um crime de falsas declarações.

É certo que não eram pai e filha como o João e a Rute, mas parece-me que, se quiser declarar que era o condutor de um automóvel em que só era passageiro, será mais prudente fazê-lo de Lisboa para cima...

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