Em média 300 mil clientes da EDP sofrem cortes. Como fazem os que ficam sem luz?

O frio lá fora, uma sala aquecida, luzes de Natal a piscar na árvore. Para muitos portugueses a noite de Natal não será assim. Há mais pessoas a ficar sem serviços básicos, porque não conseguem pagar. E, sobretudo, mais pessoas a pedir para renegociar dívidas. Na EDP acordos subiram 25% nos últimos meses.

Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Daniel Rocha

Sempre que toca a campainha, Patrícia inquieta-se. Serão funcionários da EDP? Terão descoberto que usa electricidade, apesar de lha terem cortado? Não é remorso. “Tinha de me fazer à vida”, diz ela. “Não ia ficar sem luz com os meus filhos!” É receio. A vizinha de cima, que é sua amiga, fez como ela: comprou uma pilha, por um euro e meio, numa loja no centro do Porto, perto da Segurança Social, e reactivou o contador. Mas dá-se mal com a vizinha da frente e essa tem as contas em ordem.

Patrícia deixou de pagar a água, a electricidade e a renda no Verão. O rendimento social de inserção (RSI) tinha sido suspenso por erro dos serviços – algo que tem estado a acontecer em diversas zonas do país, muito por força do novo sistema informático. E durante quatro meses acumulou dívidas.

Reposta a prestação social de 280 euros mensais, Patrícia pagou ao senhorio e foi aos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento fazer um plano de pagamento. À EDP nem chegou a ir. Se lá fosse, pensou, ficaria sem nada. A dívida era grande.

A EDP diz que o número de interrupções por falta de pagamento “não ultrapassa os 5% da totalidade dos clientes, sendo que, na esmagadora maioria dos casos, estas situações são seguidas de operações de religações”. Como a EDP tem cerca de seis milhões de clientes em Portugal continental, isto significa que 300 mil por ano vêem o abastecimento interrompido por falta de pagamento — Gilda Sousa, do gabinete de comunicação, nota que alguns clientes têm mais do que um contador, pelo que é mais correcto falar de “clientes com cortes” do que de “pessoas com abastecimento interrompido”.

Os cortes, sublinha ainda, são sempre um último recurso, “após um pré-aviso de várias semanas”. Números que permitam traçar uma evolução das interrupções de abastecimento não foram fornecidos.

Já sobre a evolução dos acordos para pagamento faseado das dívidas a evolução é clara: “Verifica-se nos últimos meses [um aumento de 25%]. Cerca de 100 mil acordos no último ano.”

“Os comercializadores do grupo EDP (EDP Serviço Universal e EDP Comercial) têm acompanhado, ao longo dos últimos meses, com o cuidado que a situação merece, a situação dos clientes com dívidas em atraso, sendo que, em termos globais, a situação se tem mantido relativamente estável”: nos clientes residenciais verifica-se um crescimento de 15% da dívida corrente, nos clientes empresariais há uma “redução significativa”.

Água a prestações
É mais difícil contabilizar os cortes de água, porque a distribuição é essencialmente descentralizada. Mas só no Porto são efectuadas, diariamente, cerca de 50 suspensões de abastecimento por incumprimento, segundo a empresa municipal Águas do Porto. “A dívida concentra-se em menos de 2% dos nossos clientes, muitos dos quais recorrem a planos de pagamento em prestações. Neste momento, estão em curso cerca de 3000 planos de pagamento, sensivelmente o mesmo número do ano transacto.”

Já em Sintra, o número de cortes de abastecimento baixou este ano (de 21.058 para 18.210), mas aumentaram os acordos de pagamento de dívidas (de 2171 para 2292) e o número de utilizadores com uma tarifa bonificada — a Tarifa Sintra Solidária — passou de 2150 para 4100.

“Ultimamente, em função de uma conjuntura socioeconómica cada vez mais difícil, o valor da prestação [a pagar quando há acordos de pagamentos em dívida] não é calculado em função de um número de prestações definido, antes por um número de prestações possível de ser cumprida pelos munícipes”, comunicam ainda os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Sintra — empresa que tem quase 180 mil clientes. Outras empresas municipais que fornecem água contactadas nos últimos dias não responderam às perguntas do PÚBLICO.

À Deco — Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor — são também cada vez mais as famílias que chegam com facturas por pagar. “Entre Janeiro e Outubro tínhamos aberto 3422 processos e em 10% tivemos intervenção na negociação de dívidas relativas ao fornecimento de electricidade, água e gás”, diz Natália Nunes, do Gabinete de Apoio ao Sobreendividado. “No entanto, existem também muitas situações em que as famílias já estão confrontadas com o corte do serviço.” Nenhuma quis participar na reportagem do PÚBLICO. Têm vergonha.

Uma bilha para dois anos
Os casos de pessoas que se confrontam com cortes de serviços básicos, por falta de pagamento, são bem conhecidos dos assistentes sociais. A Cáritas de Lisboa faz saber que “tem aumentado o número de utentes que têm algum dos serviços de abastecimento básico cortado”. “As facturas da luz assumem valores absurdos”, diz nas respostas enviada ao PÚBLICO.

Os casos dos que “resolvem” o problema “enganando” o contador e fazendo “puxadas” ilegais são igualmente referidos. A Assistência Médica Internacional (AMI) já tem, inclusive, números provisórios sobre o assunto: este ano,  das mais de 10 mil pessoas que foram acompanhadas nos centros de apoio e moram em casa alugada, só 601 (mais 39% em relação ao ano anterior) não têm acesso a luz — ou têm-no através de “puxadas”.

Há ainda 393 (mais 8% do que no ano anterior) que não têm acesso a água canalizada ou têm-no de formas igualmente ilegais.

“Sim, a EDP tem tarifas sociais [60 mil pessoas abrangidas], mas as pessoas têm de pagar na mesma, não conseguem, e muitas pedem-nos ajuda para renegociar as dívidas”, diz Maria da Luz Cachapa, que está à frente do centro Porta Amiga da AMI, em Almada.

Isabel, 52 anos, é uma das pessoas apoiadas pela AMI — sobretudo com alimentos, que vai buscar, já confeccionados, à Porta Amiga. É Maria da Luz quem começa por explicar o percurso desta mulher: tem o 2.º ano de uma licenciatura de Filosofia, já teve múltiplas profissões até que de repente ficou sem trabalho.

Isabel chega ao centro, de mãos nos bolsos, para a reportagem com o PÚBLICO. “A minha área? É ser polivalente”, começa por dizer.  

Aceita que visitemos a sua nova casa — um anexo minúsculo de uma vivenda na Caparica, com janelas de vidro rachadas pelas quais entra o vento e a chuva, nestes dias de Inverno, apesar das placas de contraplacado colocadas nos locais onde os buracos são maiores. Há um frigorífico — uma novidade, porque durante anos não teve —, um fogão, uma mesa, uma cama, uma casa de banho e os gatos que são a sua única companhia. Tudo num espaço do tamanho de um quarto. Como os vidros das janelas estão pintados de branco, mal entra luz.

Foi secretária, copeira, ama de crianças, trabalhou numa peixaria, foi road manager. “Montava palcos para espectáculos, tratava de toda a logística, acompanhei a Dulce Pontes.” Agora recebe o subsídio social de desemprego: 324 euros. Não arranja trabalho.

Mudou-se há duas semanas para o anexo com os seus gatos — por causa deles estava preocupada em ser despejada e não encontrar um tecto alternativo, porque por ela, diz, iria viver para o parque de campismo da Costa da Caparica. Paga 150 euros de renda, com água e luz incluídas. Está feliz. “Não é um palácio”, mas está feliz.

A verdade é que já não conseguia pagar a renda da casa onde estava (250 euros, fora despesas), mesmo com a vida espartana que levava. “A última bilha de gás que tive durou dois anos e três meses. Não usava fogão, só microondas — comprei um de baixo consumo. Era só para aquecer a comida que ia buscar já feita, à AMI.”

Roupa lavada à mão
Isabel sabe tudo sobre o que é viver sem coisas que a generalidade das pessoas considera essenciais. Como não podia gastar gás, com os banhos fazia assim: aquecia a água no microondas, punha num balde. Um balde leva 11 litros, explica. Noutro balde punha água fria. Mais 11 litros. E com uma tigela ia tirando água dos baldes, ora quente, ora fria, e despejava por cima dela. “Assim não se gasta gás. E gasta-se pouco de luz. A isto chama-se sustentabilidade.”

A roupa, lavava à mão — mas só quando acumulava roupa suficiente para encher mais um balde de água, para não desperdiçar água. “Eu dizia às pessoas que lavava tudo à mão, elas diziam: 'Ahhh...' Ficavam a olhar para mim como se eu fosse de outro planeta. É por isso que o meu conceito de pobreza é... as pessoas não sabem o que são certos esforços. Mas eu sou filha de militar. Sou muito disciplinada.”

Aquecedor não tinha: “A gente com o tempo vai enrijando. Passa-se bem sem aquecimento.” Mais aborrecido era não ter frigorífico — no Verão não podia beber leite, porque se estragava. O fogão também é uma novidade, incluída na renda do cubículo para onde agora se mudou. “Já fiz ovos estrelados. No microondas não saem bem...” E até há duas semanas só tinha microondas.

Resumindo: contas astronómicas de luz, de água, do que fosse? Nunca teve. Pagava oito, dez euros de luz, seis de água... Dívidas, só à Segurança Social dos tempos em que trabalhava a recibo verde e não pagou contribuições. Tentou negociar um plano de pagamento — 50 euros por mês. Conseguiu reduzir a dívida para 1300 euros. Quando perdeu o emprego, voltou a deixar de pagar. E com os juros já está outra vez nos 2000. “Ameaçam-me com prisão. Façam como entenderem. Não tenho.”

“E o frio?”
Ana Martins, directora nacional da Acção Social da AMI, não esconde a indignação que estes casos lhe causam. “As pessoas já tinham dificuldade em pagar as contas, mas nos últimos dois anos tudo se agravou. E o frio? Há a ideia de quem Portugal não se passa frio, mas só quem nunca esteve na casa de um alemão pode dizer isso. Em Portugal passa-se frio e os pobres passam muito frio, porque a electricidade é incomportável e, em tempo crise, em vez de as empresas serem mais solidárias, o caminho é o contrário.”

No Porto, a QPI, a instituição particular de solidariedade social que gere o processo de Patrícia, vai ajudando-a a encontrar algum apoio extra. Nos meses de suspensão de RSI, por exemplo, recorreu à Acção Social e foi recebendo 100 euros. Era com isso e com o abono dos miúdos, de três e sete anos, que punha comida na mesa.

Mas por falta de entrega do pedido de renovação, Patrícia está outra vez sem RSI. E, desta feita, a Acção Social não lhe está a valer: os serviços alegam que tem dinheiro, que recebeu os quatro meses juntos, do RSI, e ela argumenta que a verba se sumiu nas dívidas, que nem consegue pagar mais contas.

Oficialmente, nem electricidade tem dentro da sua casa minúscula, onde na sala, apesar de tudo, está montada uma árvore de Natal.

Sugerir correcção
Comentar