É a escola pública, pois claro. Falta o resto

A força do que une também deve desocultar o que deslassa, o que desune, o que quebra o compromisso.

Vivemos hoje um compromisso social novo com a escola pública, criado por uma maioria em confronto com o privilégio. Mais de 40 anos depois de Abril, isto levou um abanão e a democracia talvez tenha resolvido uma questão de alma. Mas a força do que une também deve desocultar o que deslassa, o que desune, o que quebra o compromisso.

Os e as jovens viveram há pouco o sofrimento dos exames. Vimos, sobretudo, imagens de aceitação. Não vimos as lágrimas, a frustração ou a autoestima deles e delas no fundo do poço. Mas houve. Incluído no trabalho de Clara Viana sobre o exame de História de 12.º ano, o impressionante testemunho de um jovem que se pergunta: “Estarei a ficar velho? Não! A culpa é da História.” Quem é que lhe responde que “velho” é o que o faz sentir “velho”?

No caso da História, a preparação para exame implicava 6 temas, 6 manuais de 10.º, 11.º, 12.º, anos. Toneladas de matéria já chegavam para nos perguntarmos sobre o papel dos exames e tudo o que é “velho”, não fossem ainda as duvidosas opções.

O exame de História é, desde o ano passado, uma entremeada de itens de seleção e de construção, o que já de si é um erro no plano da avaliação, como foi denunciado. A seguir, os outros problemas: documentos como artifício, perguntas e conteúdos ardilosos. No Grupo I (10.º ano, 20 pontos), os itens de seleção eram suportados por um longo documento que servia apenas para responder a uma das quatro questões. O Grupo II (11.º ano, 40 pontos) dedicava-se à crise da monarquia constitucional e à afirmação do projeto republicano (e sim é uma questão importante, correspondente a 3 páginas dos ditos 6 manuais), com perguntas ambíguas que pediam o que não havia para encontrar nos documentos. No Grupo III (12.º ano), os 50 pontos da resposta extensa eram dedicados às “políticas económicas e sociais da Alemanha”, do primeiro pós-guerra a 1960, quando nem as ditas nem a história da Alemanha fazem parte do programa. No grupo IV (12.º ano), os 30 pontos dedicados à integração de Portugal na Europa comunitária (sim, é um conteúdo importante, tratado em 3 páginas dos ditos 6 manuais), além de um item de seleção duvidoso, implicavam uma questão sobre impactos positivos para a qual os documentos apresentados não serviam para nada, etc., etc. “Exigência” e “rigor”? Não. Manhosice, num exame nacional distante do espírito e da letra do programa da disciplina, homologado em 2002, recorde-se. E alguém avalia isto?

O envelhecimento “crescente e constante” do corpo docente e o desequilíbrio de género são evidências, recentemente abordadas em “Recomendação” do Conselho Nacional de Educação. [1] São estas professoras, a uma década ou menos da reforma, que tratam, na parte que lhes cabe, do futuro das crianças e jovens deste país, o que é muito.

Elas têm, hoje, mais horas de aulas do que quando começaram a trabalhar, foram gato-sapato de todas as experiências com o sistema de ensino, foram vítimas da normalização e do improviso, da burocratização e da desvalorização. Sabem-se muito longe deles e delas: durante muitos anos da sua vida não souberam o que era um computador e viveram as suas experiências escolares entre o Estado Novo e a jovem democracia (vá-se lá ver quais pesaram mais nas suas autorreferências). O que são ou deixam de ser, sem progressão, sem avaliação séria e com a escola cada vez mais anichada, na verdade, não interessa para nada. Há de tudo: as que resistem, as que insistem, as que desistem; as competentes e as incompetentes; as democratas e as autocratas. Às autocratas nada acontece, até porque o esvaziamento da democracia nas escolas, sendo transversal, as legitimou.

O envelhecimento é um bloqueio do sistema com efeitos mal avaliados sobre professores/as e alunos/as. Ele duplica os seus danos quando, à distância evidente e difícil entre gerações, se acrescenta o discurso radicalmente pessimista sobre os e as jovens. Quando o “poder da idade” se consagra em discurso tonitruante que faz de qualquer adolescente um estranho hostil  – “eles e elas não sabem”, “não querem saber”, “não são” isto e aquilo, “não chegarão a lado nenhum”. Isto faz sentido, 40 anos depois de Abril? O senhor Ministro da Educação invocará a escola republicana, olhando de frente para estes problemas.

Ex-deputada, dirigente do Bloco de Esquerda

[1] “A condição docente e as políticas educativas”, Junho de 2016, conselheira/relatora, Maria da Conceição Castro Ramos

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