Direito ao esquecimento ou direito à censura?

Apagar o passado é um exercício muito perigoso...

Há vinte ou trinta anos atrás, se fosse apanhado a conduzir embriagado, tal notícia poderia surgir num qualquer jornal local ou mesmo nacional, mas rapidamente cairia no esquecimento e, passados dez ou vinte anos, ninguém se lembraria do assunto. Só quem fosse procurar a notícia nos arquivos do jornal conseguiria ressuscitar esse lamentável acontecimento.

Mas, hoje em dia, corre o risco de, passados vinte ou trinta anos sobre uma condução alcoolizada, a notícia da mesma ser a primeira informação que surgirá sobre si num qualquer motor de busca da Internet em que o seu nome seja inserido.

A fantástica capacidade que nos foi dada de esquecermos o passado está ameaçada pela omnipresença virtual de tudo o que aconteceu. O passado já não morre. A partir do momento que a notícia do jornal passou a ser identificada por um qualquer motor de busca da Internet, ou a constar das bases de dados do mesmo, não mais o seu passado deixará de o revisitar.

E se, na verdade, em grande parte, somos o nosso passado e o nosso passado é aquilo que recordamos ou sabemos dele, a Internet, ao manter vivos mil e um acontecimentos passados, veio transformar a nossa existência. Agora já não conseguimos deixar de ser o que fomos, mesmo que isso já tenha muito pouco a ver com o que somos...

Contra esta aparente inevitabilidade, insurgiu-se um cidadão espanhol, que conseguiu que o Tribunal de Justiça das Comunidades reconhecesse, de forma expressa, a existência de um direito ao esquecimento no mundo virtual. Um direito a que não apareçam nas buscas efectuadas sobre nós factos que, embora verdadeiros, respeitam à nossa privacidade e cujo conhecimento público e indiscriminado já não se justificará, embora, em determinado tempo histórico, tivessem sido legitimamente publicados. A questão é, no mínimo, complicada e a decisão do Tribunal de Justiça levanta inúmeros problemas e dúvidas, a que não dá resposta, e que prometem mil e um processos judiciais, para gáudio dos advogados.

Nos Estados Unidos da América, onde a liberdade de expressão é constitucionalmente a rainha das liberdades, esta hipótese de se censurar a informação sobre um passado lamentável mas verdadeiro, em nome da defesa da privacidade e do bom nome actuais, é absolutamente impensável. Pese embora a enorme hipocrisia da sociedade americana em numerosos domínios, pelo menos neste campo não há muitas dúvidas: o que foi feito ou dito, dito ou feito foi e não mais será apagado ou negado.

Na Europa, a situação não é a mesma. A protecção dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos, nomeadamente da sua privacidade e bom nome, criou realidades legais bastante distintas e esta decisão da grande secção do Tribunal de Justiça (Processo C-131/12) veio tornar clara a enorme complexidade da matéria em causa.

Porque não se pense que o Tribunal de Justiça veio dizer que, a partir de agora, sempre que quisermos, podemos apagar o passado que nos incomoda, obrigando judicialmente o Google ou os outros motores de busca a apagarem das suas páginas qualquer informação incómoda ou desagradável, apesar de verdadeira.

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça só se pronunciou sobre o caso em que a pesquisa incide sobre o nome da pessoa e já não quando a pesquisa incide sobre quaisquer outras expressões que, no entanto, podem levar aos mesmos resultados. Isto é, o Tribunal de Justiça admite que o motor de busca seja obrigado a bloquear a notícia sobre uma penhora efectuada a um navio do Sr. José Lopes há vinte anos, quando se faz uma pesquisa com a expressão “José Lopes”, mas não obriga a bloquear essa mesma notícia quando a pesquisa seja feita, por exemplo, usando a expressão “penhoras a navios”.

Por outro lado, embora o Tribunal de Justiça reconheça que os direitos fundamentais ao respeito da vida privada e familiar e à protecção dos dados pessoais prevalecem, em princípio, “não só sobre o interesse económico do operador do motor de busca mas também sobre o interesse do público em aceder à informação numa pesquisa sobre o nome dessa pessoa”, não deixa de reconhecer que tal afirmação genérica terá de se confrontar com a realidade do caso concreto. E, assim, o Tribunal de Justiça reconhece que esse direito ao esquecimento não existirá quando, por exemplo, dado o “papel desempenhado por essa pessoa na vida pública, a ingerência nos seus direitos fundamentais é justificada pelo interesse preponderante do referido público em ter acesso à informação em questão”.

Vale isto por dizer que, embora esta decisão seja perigosa em termos de abrir espaço para censuras da história e para uma imensa litigância em que todos os “Irmãos Metralhas” do mundo vão tentar apagar o seu passado real no mundo virtual, nada garante que os tribunais lhes vão dar razão nessas tentativas de branqueamento da História. A procissão ainda vai no adro...

Advogado

 

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