Dependentes de sexo “procuram ajuda quando são apanhados ou entraram em depressão”

Uma freira que se masturbava "30 vezes por dia". Um homem que foi condenado por não conseguir deixar de se masturbar na varanda da sua casa. Foram algumas das pessoas que procuraram a ajuda do psiquiatra Afonso de Albuquerque que explica o que é ter “motivação sexual excessiva”.

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Daniel Rocha

Um homem que dá cabo da carreira e do casamento porque não consegue deixar de mandar mensagens com forte teor sexual a raparigas que mal conhece tem uma "adicção sexual"? A interrogação invadiu muitas páginas da imprensa norte-americana nos últimos dias a propósito de Anthony Weiner, um ex-congressista, marido de Huma Abedin, a vice-presidente da campanha de Hillary Clinton.

O terceiro escândalo sexual a envolver alguém que já quis ser mayor de Nova Iorque rebentou há uma semana. Mas o que é a "adicção sexual"? E é possível estar viciado em “sexting”, a palavra inglesa inventada para descrever a troca de mensagens e imagens de cariz sexual, pelo telemóvel? Falámos sobre este assunto com o psiquiatra Afonso de Albuquerque que foi presidente-fundador da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica, da Associação Portuguesa de Terapia Comportamental e da Liga Portuguesa para o Estudo do Stress Traumático. Escreveu, entre outros, o livro Minorias Eróticas e Agressores Sexuais e dezenas de artigos científicos. Aos 81 anos continua a exercer psiquiatria, em Lisboa. Neste domingo assinala-se o Dia Mundial da Saúde Sexual.

Na mais recente versão do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria [que lista diferentes categorias de transtornos e os critérios para diagnosticá-los], está descrito o exibicionismo, o sadismo sexual, o fetichismo, só para dar exemplos... mas não existe uma perturbação chamada “adicção sexual” ou “dependência sexual” ou algo parecido. O que é, afinal, ser um adicto sexual?
O nome “adicção sexual” é controverso. Não está no manual de diagnóstico, há outras perturbações, imensas, mas não essa. Também não existe na Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial de Saúde, na sua 10.ª edição, a mais recente. Se vai estar na próxima edição não sabemos. Digamos que há várias perturbações, não só esta, que andam à procura de nome e de lugar na Classificação Internacional de Doenças.

E o que é?
São pessoas com “motivação sexual excessiva” — que, já agora, é outro nome possível —, pessoas que se queixam de que têm um excesso de impulso sexual, uma frequência de actividade sexual tal que estão absolutamente absorvidas por essa actividade, não conseguem parar, subordinam tudo o resto a essa actividade.

Ela contamina todas as esferas da vida.
Sim. Recordo-me de um caso, de um homem que foi encontrado morto por auto-asfixia, rodeado de fotografias pornográficas. Ele estava em casa, na casa de banho, punha as fotografias à volta e, naquele dia, pôs o laço no pescoço mais apertado e foi encontrado morto, com grande choque para a família [a chamada asfixia auto-erótica é a indução, pelo próprio, de um estado de asfixia enquanto se masturba, o que resulta num orgasmo mais intenso, mas acarreta um risco elevado de morte acidental]. Segui depois a mulher dele e a filha dele, que encontraram o corpo, um drama...

Mas esse rapaz tinha uma dependência sexual?
Era dependente sexualmente da auto-asfixia. Acompanhava todos os seus actos sexuais com auto-asfixia.

Não é preciso estar com outras pessoas ou procurá-las sequer para se ter uma dependência sexual?
Este é um exemplo disso. Recordo outro caso: uma freira, há uns 30 anos. Veio ter comigo, e foi preciso muita coragem para o fazer, disse-me que se masturbava 30 vezes por dia, o que a fazia sofrer brutalmente, porque não podia compatibilizar aquilo com a sua vida religiosa. Mas não era capaz de parar. Tinha também uma depressão. E tratei a depressão, que foi talvez a parte mais simples, mas nesse processo de saída da depressão ela deixou de se culpabilizar tanto, e deixou de se masturbar tanto.

Para o diagnóstico, o que é mais valorizado? É o número de vezes que a pessoa se masturba ou faz sexo, ou o sofrimento que diz sentir?
O sofrimento.

Alguém pode masturbar-se ou ter sexo com uma frequência muitíssimo superior “à média” das pessoas, e não ter nenhum problema, nenhuma perturbação.
Pode ter se isso prejudica a sua vida: tratei um exibicionista que tinha acabado por ser condenado [por atentado ao pudor] porque sistematicamente ia para a varanda da casa dele, onde vivia com a família, e masturbava-se e exibia-se quando passavam determinadas mulheres. Era compulsivo e era sempre naquele sítio. A compulsão é uma obrigação interior.

Anthony Weiner, o ex-congressista norte-americano que já viu a sua carreira política destruída pelo chamado “sexting” tem visto ser debatida, nos últimos dias, nos jornais e nas televisões dos EUA, a sua alegada adicção sexual. Ele disse uma vez, para um documentário, que trocar mensagens e fotografias suas de cariz sexual com mulheres era como um “vídeo-jogo”. É possível ficar viciado em “sexting”?
Viciado é uma palavra que implica uma posição moral. Dependente, sim é possível. Como é possível ficar dependente do jogo, é semelhante. Não se come nem se bebe... Acontece provavelmente com pessoas que têm características pessoais que têm a ver com a sugestionabilidade.

Sugestionabilidade?
Os ilusionistas têm um truque: está a sala cheia, mas não vão fazer o resto do show com qualquer pessoa. Dizem: “Agora vou contar até 3 e quando chegar a 3 vai haver pessoas que não conseguem levantar-se.” E há sempre quem não consiga. E é essa que eles vão escolher para participar no show.

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Portanto, a sugestionabilidade é uma característica das pessoas que se tornam mais facilmente dependentes. E mais?
Outra é a obsessividade, que se calhar até tem mais raízes biológicas. As pessoas obsessivas têm um excesso de serotonina, que é uma amina cerebral que permite a passagem do impulso numa certa zona do cérebro, o hipotálamo. A serotonina é importante porque tem a ver com estados depressivos e estados ansiosos. Isto interessa aqui porque sabemos que as pessoas com défice de serotonina no hipotálamo têm, com frequência, não só depressões como, muitas vezes, obsessões e compulsões.

Então, a compulsão sexual é mais predominante em pessoas com ansiedade, ou depressão, ou...
Há também factores hereditários, há estudos que mostram que estas pessoas têm familiares com outras perturbações sexuais, muitas desconhecem-no.

Há estudos que dizem também que 5 a 6% da população em geral é sexualmente compulsiva e até mais, 8%.
Andará por aí. Parece muito, mas não é.

Há uma idade mais “propícia” para a manifestação da dependência sexual? Os seus doentes, por exemplo, que idade têm? E, já agora, é correcto chamar-lhes doentes?
Não posso chamá-los dessa forma, sou médico e tenho que olhar para a classificação internacional das doenças. E não está lá, ainda que seja provável que venha a estar. São pessoas que precisam de ajuda, que sofrem, um sofrimento que as leva a pedir ajuda — e, na maior parte dos casos, não a pedem, porque é extraordinariamente difícil confessarem, mesmo a um médico, que vão lá por esta razão. É por isso que vemos muito menos estes casos do que, por exemplo, um delírio, uma doença mental mais grave, até, mas que se apresenta como tal às pessoas.

É socialmente mais bem aceite uma doença mental grave?
Não é muito bem aceite, mas é mais bem aceite do que dizer que se tem uma compulsão sexual. Quanto às idades, não tenho números, mas posso falar da minha impressão clínica: na adolescência, até aos 20 e poucos anos, quando aparecem estas perturbações, também desaparecem. As pessoas que tenho visto são pessoas com mais de 25 anos, com a sua sexualidade definida.

São casadas, têm relações estáveis...
Sim. Vêm porque ou são apanhados, ou entraram em depressão eles próprios. A grande maioria destas pessoas com este problema não vai ao médico falar disso, pode ir ao médico mas para falar de outra coisa. Mais do que uma vez me aconteceu a pessoa vir deprimida, pedir ajuda para a depressão, e só no decorrer do tratamento falar desse aspecto.

Se lhe chegasse aqui alguém como Anthony Weiner, carreira arruinada, a dizer-lhe ‘ajude-me que eu não consigo parar de mandar mensagens sexuais a mulheres’, como é que o tratava?
Cada caso é um caso. Pode usar-se medicamentos, fazer os tais antidepressivos que são inibidores da captação da serotonina. Pode fazer-se psicoterapia individual. Temos obrigação de, para além de dar medicação, ajudar a pessoa a ultrapassar o comportamento que diz que quer ultrapassar, independentemente de ser considerado patológico ou não. E ver até onde podemos ir.
Recordo-me de um homem, que tratei por causa de um depressão, que a determinada altura me disse que se vestia de mulher, masturbava-se e tinha alguns parceiros com quem se reunia por vezes para fazer isso. Não se considerava homossexual, a questão dele era o travestismo. Era casado, tinha filhos, era engenheiro, fazia isto às escondidas, em casa dele, vestia-se numa cave, usava a Internet, tudo muito organizado. Muito organizado. Para ele, não era algo patológico. Fazia porque lhe dava prazer, mas tinha um medo enorme de ser apanhado pelos filhos. E pediu ajuda.

O que fez?
Sugeri por exemplo que colocasse as fotografias dos filhos, uma de cada lado, junto ao computador na cave, onde usava a Internet. E ele colocou e disse que fazia menos vezes, porque já não sentia o prazer que tinha antes.

O "sexting" é muito popular entre os adolescentes — trocam entre si fotografias eróticas dos próprios. Correm mais risco de desenvolver uma relação patológica sexo vs tecnologias?
Os jovens têm uma vantagem imensa sobre os adultos: é que mudam. Hoje experimentam uma coisa, amanhã outra. O que é importante é que os jovens tenham acesso às tecnologias desde logo, desde que mostram interesse nisso, mas que seja uma relação tutelada pelos pais até ao final da adolescência.

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