Deixem-se de lágrimas de crocodilo

A única pergunta que realmente me interessa ver respondida é sobre a cabeça de cada português: que dimensão precisa de ter uma tragédia para mudar o rumo de um país?

Pelas televisões passam jornalistas, bombeiros, políticos, engenheiros, especialistas em protecção civil, e eu sinto a falta dos antropólogos, dos psicólogos e dos neurocientistas, porque a única pergunta que realmente me interessa ver respondida é sobre a cabeça de cada português: que dimensão precisa de ter uma tragédia para mudar o rumo de um país? Quantos mortos são necessários para que se faça uma revolução na gestão da floresta? Será que a tragédia de Pedrógão foi suficientemente grande e grave para que seja enfim possível alterar as políticas de reflorestação, os métodos de prevenção e combate aos incêndios e o ordenamento de um território cada vez mais desertificado?

As perguntas sobre o que aconteceu e porque aconteceu já foram respondidas pelo PÚBLICO com um título perfeito: “O que é que falhou neste sábado? Tudo, tal como falha há décadas.” É isso mesmo. Há anos e anos sem fim que as pessoas que percebem de floresta e de combate aos incêndios andam a gastar o seu latim em estudos, livros, entrevistas e artigos, com opiniões que são hoje perfeitamente consensuais entre especialistas: um fogo daquela dimensão não se consegue apagar com meios humanos – só termina quando não houver mais combustível; os bombeiros deveriam ser forças profissionais que limpam no Inverno o que não querem que arda no Verão; no terreno deveriam existir mais pás e escavadoras e menos autotanques e mangueiras; um bom rebanho de cabras pode impedir mais fogos do que um regimento de sapadores; não se pode pedir a populações envelhecidas e empobrecidas que assumam elas a limpeza das suas florestas; é preciso alterar radicalmente a gestão do território rural. E por aí fora.

Quantas vezes já ouvimos isto? O Observador republicou há dois dias um texto de Agosto de 2016, escrito após o fogo do Funchal. Chamava-se “Porque arde Portugal?” e acabava assim: “Ficou provado que quando as coisas correm mal, correm realmente mal. Resta saber como — ou quando — será a próxima vez.” A próxima vez foi no sábado. As razões pelas quais temos tragédias cíclicas são as mesmas pelas quais temos falências cíclicas – porque somos bons a reagir (vejam-se os numerosos actos de heroísmo e a onda de solidariedade) mas péssimos a agir. E a verdade é esta: não existe capacidade reformista para fazer tudo aquilo que é preciso de forma a evitar incêndios calamitosos. Um reordenamento do território teria custos altíssimos, que nenhum político está disponível para pagar. Pior: que nenhuma população está disponível para tolerar. Porque hoje choramos os mortos de Pedrógão, mas se amanhã o governo quisesse tirar a um cidadão o pinhal abandonado que está na família há três gerações, a revolta seria imediata.

Voltemos à pergunta inicial: será que a tragédia de Pedrógão foi suficientemente grande e grave para mudar alguma coisa? A minha resposta é um rotundo “não”. Apaziguamos a alma com donativos. Vemos o presidente da República desculpar toda a gente ainda antes de saber o que aconteceu. Distribuímos afectos. Publicamos decretos. Escrevemos textos bonitos sobre dor e lágrimas. Mas após o Verão vem o Inverno e ninguém mexe uma palha. Querem respeitar os mortos de Pedrógão? Então evitem as lágrimas de crocodilo e a proclamação de grandes soluções a partir dos sofás da capital. A melhor homenagem que podemos prestar aos mortos é não fingir que a sua morte serviu para alguma coisa. Não serviu. Os fogos descontrolados vão continuar. Os mortos também.

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