Debater a Escola Republicana

O conceito de escola republicana mostrou-se de uma extraordinária importância sobretudo porque permitiu à escola libertar-se de tutelas privadas e totalizantes.

Frequentemente no debate político se fala em Portugal nos valores republicanos. A República instaurada há mais de um século continua a ser uma bandeira ideológica que guia os valores que têm vencimento na nossa organização política e social. Não é pois de estranhar que se fale também, e muito, nos valores da escola republicana e são estes os valores que gostaríamos brevemente de comentar.

A escola republicana tem como valor fundamental a separação entre o que é do domínio privado e o que deve ser do domínio público. Numa célebre carta que o ministro da Instrução Pública francês da altura, Jules Ferry (1832 – 1893) enviou aos professores franceses a 17 de novembro de 1883, esta separação é muito claramente estabelecida. De um lado os valores pessoais, as crenças de cada um, necessariamente livres e diversas; do outro, os conhecimentos escolares que devem ser comuns, indispensáveis e propriedade de todos.

 A escola republicana institui-se assim como respeitando os valores culturais, religiosos, étnicos, vivenciais de cada um para considerar que todos os alunos devem aprender os valores republicanos, esses sim com uma abrangência universal e sendo propriedade de todos. Percebe-se melhor agora os acesos debates sobre a ostentação de símbolos religiosos nas escolas francesas: por exemplo, alunas muçulmanas impedidas de usar na escola vestes semelhantes às que usariam nos países de cultura dos seus pais. A escola republicana, procura a igualdade, a liberdade e a fraternidade não se imiscuindo nas crenças pessoais mas colocando-as fora da escola, à porta da escola.  Se essas crenças entrarem na escola, elas certamente vão interferir com a construção de um conhecimento republicano que seja universal e “para todos”. Este conceito de escola republicana foi desenvolvido para impedir que o poder da Igreja se intrometesse na educação laica e cidadã. 

Já Voltaire, no seu famoso “Tratado sobre a Intolerância” publicado em 1763 tinha dito “Se quereis que nós toleremos a vossa doutrina, começai por não ser nem intolerantes, nem intoleráveis”. Ressalvado o tom paternalista desta frase, encontramos nela o cerne da Educação republicana: tolerar as crenças e universalizar o conhecimento laico.

Os debates contemporâneos sobre a Educação, não passam ao lado da discussão destes princípios. Este debate está bem presente quando se fala no ensino religioso nas escolas e também da discussão dos valores pedagógicos atuais que defendem que as culturas dos alunos não devem ser ignoradas, mas sim levadas em conta para permitir um maior sucesso educativo.  Por exemplo, está certo ou está errado que a escola se modifique para entender e acolher valores da comunidade cigana para educar os alunos desta comunidades que vão à escola pública? E de que forma é que estes valores podem ser reconhecidos e levados em conta? Criando escolas ou turmas especiais? Contemplando no currículo as formas particulares como a cultura cigana olha e atua no mundo?

Como se vê por este mero exemplo, o assunto não é fácil de resolver. Mas a sua não resolução levanta também questões. Se a escola se mantém firmemente fiel aos princípios de separação entre as culturas e o conhecimento republicano, é certo que muitos alunos (agora numa escola incomensuravelmente mais multicultural que no tempo de Jules Ferry) se sintam marginalizados e não identificados com ela; se a escola, por outro lado, se torna porosa e permeável às culturas dos alunos terá muita dificuldade em encontrar um conhecimento que possa ser aceite como um conhecimento comum e património de toda a comunidade republicana.

É o que habitualmente se designa em França por “socle commun” – a base comum - que contribuiria para que todos os cidadãos pudessem dispor de um conjunto de conhecimentos fundamentais sobre o mundo e que esses conhecimentos lhes permitissem ser membros ativos, críticos e participantes numa sociedade democrática.

O conceito de escola republicana mostrou-se de uma extraordinária importância sobretudo porque permitiu à escola libertar-se de tutelas privadas e totalizantes. Lembro a este propósito o número crescente e preocupante de alunos que em alguns países – nomeadamente nos Estados Unidos – são retirados desta escola republicana pelos pais para não aprenderem “disparates” como, por exemplo, que o mundo é fruto de uma evolução de milhões de anos.

Este património democrático da escola republicana tem que continuar a ser discutido, sobretudo para responder a casos limite que não eram previstos quando estas bases foram lançadas. Por exemplo: “Quem não adquire esta base comum, ainda assim é cidadão?” ou “O conhecimento pode ser visto presentemente como tão impermeável às culturas dos alunos?”

Questões importantes para nos colocarmos e para resolvermos. Mesmo Jules Ferry tinha consciência desta dificuldade ao dizer aos professores: “…o que vão propor à criança, não é a vossa sabedoria, é a sabedoria do género humano, é uma ideia universal que muitos séculos de civilização fizeram entrar no património da humanidade”.

 

 

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