“Se não roubas para nós, não roubas para mais ninguém”

Suspeitos de tráfico de pessoas acusados de porem compatriotas romenos ao seu serviço no furto de carteiras. Quem tentava sair sujeitava-se às consequências. Julgamento começa nesta segunda-feira.

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PAULO PIMENTA / PUBLICO

Ia ficando com a mão direita inutilizada naquele domingo de Setembro. Ainda não eram 22h quando os compatriotas romenos o atacaram a soco e a pontapé, ia ele a passar na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Fez no mês passado um ano que o carteirista sentiu na pele o que era recusar um convite daquela gente. Depois do espancamento veio o pior: um dos agressores partiu uma garrafa que trazia na mão e abriu-lhe o pulso direito, cortando-lhe os tendões. A mensagem que lhe deixaram era clara, contou ele às autoridades, segundo fonte ligada ao processo: “Se não roubas para nós, não roubas para mais ninguém.” Nem por conta própria, como fazia até ali.

Dois membros deste grupo de carteiristas que actuava em Lisboa começam nesta segunda-feira a ser julgados no Campus da Justiça, em Lisboa. São acusados de tráfico de seres humanos, entre outros crimes.

Tudo indica que se dedicavam a trazer para Portugal outros cidadãos romenos, que depois punham a roubar carteiras para si, diz o Ministério Público. Quem tentava escapar-lhes ou estabelecer-se por conta própria tinha o destino traçado. Mas aquele que é apontado pelos investigadores como o principal líder do gangue conseguiu fugir por uma janela quando a polícia lhe entrou pelo modesto primeiro andar onde morava com a mulher, Diana, na zona das Olaias, logo a seguir ao episódio passado na rua com mais lojas de luxo do país. É ela, uma mulher franzina, quem se sentará hoje no banco dos réus, juntamente com um segundo suspeito, Nixon.

Nenhum dos arguidos negará que a sua principal fonte de rendimento são as carteiras alheias. Mas deverão refutar as imputações de associação criminosa e de tráfico de pessoas.

O cadastro de Diana não mente: a última multa que o tribunal lhe aplicou por carteirismo ascendeu aos 400 euros. Desta vez, porém, arrisca-se a uma pesada pena de cadeia, encontrando-se presa preventivamente em Tires há mais de um ano, por causa das suspeitas de não ser uma mera carteirista e de poder fugir do país.

Na decisão em que recusaram o seu pedido para esperar pelo julgamento em casa, com pulseira electrónica, os juízes da Relação de Lisboa consideraram haver, de facto, fortes indícios de que o gangue se dedicava a recrutar pessoas oriundas da Roménia para actuarem nas ruas mais turísticas de Lisboa, “transportando-os aos locais onde cometiam os furtos, vigiando-os e providenciando pelo seu alojamento”.

Ameaças de morte

Quando davam mostras de não querer roubar mais, ou de não lhes entregar a devida percentagem, os líderes do grupo “inflingiam-lhes violentas agressões físicas e ameaças de morte, extensíveis aos respectivos familiares na Roménia, iniciando-se assim um estado de sujeição que os impedia, na prática, de deixar de exercer a actividade por conta dos arguidos”, pode ler-se nesse acórdão, onde se sublinha que o combate ao flagelo do tráfico de seres humanos enquanto forma de escravatura moderna deve ser uma prioridade do Estado. Em 2015, em Portugal, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, foram deduzidas acusações contra 48 arguidos pela prática deste crime.

Ao contrário do depoimento prestado às autoridades para memória futura pelo carteirista atacado na Avenida da Liberdade, que tentou retirar a queixa que havia apresentado contra os seus compatriotas assim que saiu do hospital, as declarações de uma segunda vítima poderão revelar-se cruciais como elemento de prova. Depois de emprestarem dinheiro a esta mulher para fazer face a dificuldades económicas com as quais se confrontava na Roménia, os arguidos, segundo descreve a acusação, pagaram-lhe a viagem para Lisboa e alojaram-na numa pensão da Av. Almirante Reis onde já se encontravam cerca de 30 homens e mulheres romenas que, como ela, trabalhavam como carteiristas por conta da organização.

Quando tentou desistir “passou a ser perseguida”: a 2 de Novembro de 2014 foi parar ao hospital depois de ter sido espancada também na Av. da Liberdade. Dois dias mais tarde, abordaram-na na zona do castelo de S. Jorge, “puxaram-lhe os cabelos e projectaram-na contra uma parede, fazendo-a bater com a cabeça”, continua a acusação. A vítima “fugiu de Lisboa, destruiu o seu cartão de telemóvel para não ser contactada pelos arguidos e refugiou-se na cidade do Porto, tendo entretanto viajado para Roménia, por medo do que lhe pudesse vir a acontecer”.

Já o carteirista a quem cortaram os tendões da mão acabou por recuperar em grande parte, contrariando os prognósticos médicos iniciais. Terá sido detido por furto de carteiras há menos de um mês.

Ajudados pelos voos low cost

Há três anos que o director da Europol, a agência policial europeia sediada em Haia, alertou para o problema: a redução dos preços das viagens aéreas proporcionada pelas companhias low cost trouxe consigo um aumento do número de carteiristas em várias cidades europeias. Tornou-se rentável fazer incursões de um ou dois dias e voltar para os países de origem logo a seguir – habitualmente a Roménia, a Bulgária e a Lituânia, locais aos quais, dantes, a sua actuação estava mais confinada por as viagens internacionais serem dispendiosas. Rob Wainwright diz que estes grupos passaram a actuar em cerca de 20 países europeus.

Já os juízes do Tribual da Relação de Lisboa, que negaram a pulseira electrónica a Diana, falam, no acórdão que produziram, das consequências nefastas da actividade destes criminosos para o Estado português, “cujo orçamento é em parte significativa alimentado pelas receitas geradas pelo turismo”, sector “que se pretende que continue a gozar de boa reputação enquanto destino internacional de excelência” – o que implica, escrevem os magistrados, que os visitantes “não sejam alvo de furtos quando se encontram de férias em território nacional”.

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