Cautela com o teletransporte

As redes sociais mudaram radicalmente a forma como comunicamos. A maioria das pessoas chegou a essa conclusão nos últimos anos. Já eu cheguei a essa conclusão em 1987, meia hora depois de ter visto Os Salteadores da Arca Perdida.

Estava em casa do meu primo Jorge. Vimos o vídeo e decidimos que íamos ser arqueólogos como o Indiana Jones, de maneira que começámos a procurar vestígios do povo antigo que lá tinha habitado. Sucede que o povo antigo, os Saraiva, tinha sido despejado e o executor de penhoras tinha levado tudo. O Jorge sugeriu então que procurássemos vestígios do povo que lá habitava agora. Começámos pelo quarto da minha prima. Descobrimos logo um molho de cartas. As fontes documentais são o ideal para perceber como se vivia no passado, mas colocam dificuldades, uma vez que estão escritas numa linguagem diferente da nossa (que era a da 3.ª classe). Daí termos pedido ajuda da minha tia para traduzir algumas palavras como “deleito”, “aroma” e “virilha”, nomeadamente na frase “deleito-me com o aroma da tua virilha”. A minha tia foi directa à Ana. Não, como pensei, para esclarecer dúvidas junto à fonte primária, mas sim para lhe dar uma descompostura, por já ter namorado. (Atenção, a minha tia deixava a Ana ter um namorado. Acontece que as cartas não eram dele. A minha tia levava a mal que ela se correspondesse com outros rapazes justamente por já ter namorado.)

Nessa noite não houve a costumeira galhofa familiar à hora do jantar. Ninguém falou. A Ana estava de castigo no quarto, o Jorge tinha levado uma série de nalgadas e não conseguia sentar-se à mesa. O ambiente estava gelado. Metafórica e literalmente: não só a minha tia não falava com o meu tio (noutra escavação, tínhamos achado fotografias tiradas por ele à empregada, em poses atrevidas), como a Alcina (a empregada das poses atrevidas) tinha sido despedida antes de poder aquecer o jantar.

Portanto, ao dizer ao Jorge “é capaz de ser má ideia”, eu estava a prever que isto das redes sociais, em que se sabe tudo da vida dos outros à bruta, ainda ia acabar em jantares de família silenciosos.

É com essa autoridade premonitória que aviso desde já: o teletransporte é que vai mesmo revolucionar a forma como comunicamos. Descobri-o na semana passada, depois de ver Os Salteadores da Arca Perdida.

Num voo, fiquei ao lado de dois irmãos que viram a fita no seu tablet. E lembrei-me que a relação que tenho com os meus irmãos foi forjada no banco de trás de um Fiat 127, onde enjoávamos juntos nas viagens de Verão. Com o teletransporte, afinidades dessas vão acabar. Como vão acabar a dissertação fascista por banda de um taxista ou a matinal altercação no trânsito entre o pai e outros condutores, responsável pela introdução das crianças ao vernáculo. A socialização que só acontece em viagens que não implicam a desmaterialização do corpo na origem e rematerialização no destino.

Sem um trajecto, São Paulo nunca teria conhecido Cristo no teletransporte para Damasco. E a Odisseia teria só dois versos: “Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou

O quê? Teletransportou-se de Tróia para Ítaca? Então, deixa estar, Musa.”

Quanto tempo falta até lá chegarmos? Ora, aí está uma pergunta que vamos deixar de ouvir.     

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