Campeões sem condecoração

Portugal tem centros de referência de transplantação renal, hepática, cardíaca e pancreática mas carece duma reorganização urgente da coordenação hospitalar para a doação e colheita de órgãos.

Vinte de Julho de 1969, no mesmo dia em que o homem pousava na Lua, Alexandre Linhares Furtado realizava a primeira transplantação renal em Portugal: uma doação de rim em vida de irmã para irmão. Tardou até 1980 para que se retomasse a transplantação em Portugal com a colheita de dois rins em cadáver em Coimbra, de novo por Linhares Furtado, sendo um transplantado por ele em Coimbra e outro em Lisboa por João Pena. Vamos já no oitavo ano consecutivo em que na mesma data do primeiro transplante se celebra a longa história da transplantação feita de grandes sucessos e de alguns retrocessos, mas com um balanço muito positivo.

No último mês descobrimos que somos um país de grandes campeões até com justo direito a distintas condecorações. Mas importa falar doutros campeões igualmente importantes.

Começo por referir o elo mais importante da cadeia, o dador, e aqui saliento o dador vivo como exemplo máximo de altruísmo e de amor pelo próximo. São os primeiros grandes campeões! Merecem todas as condecorações imaginárias e o nosso muito obrigado. Dão um pedaço de si de forma desinteressada apenas como grande expressão de amor incondicional, melhoram e prolongam vida num receptor preso a uma doença renal incapacitante ou a uma máquina de diálise.

Uma nota de apreço para a sociedade portuguesa que, mesmo em momentos de grande dor permite e aceita bem a colheita de órgãos em cadáver prolongando de alguma forma a vida dos seus entes mais queridos multiplicada noutras vidas que renascem com a transplantação. Uma sociedade pioneira no enquadramento legislativo do dador presumido que permite que todos sejamos dadores após morte excepto se expressarmos o contrario num registo de não dadores. Uma sociedade justa e solidária que aceita a doação e quase nunca recusa tão nobre acto merece relevância.

Depois outros campeões devem ser celebrados, os doentes com doenças terminais de órgão em que só a transplantação os pode salvar ou só a transplantação lhes pode dar qualidade de vida. Celebramos os que foram transplantados mas dirigimos o nosso respeito e a nossa compaixão por todos aqueles que não viram ainda a sua vez chegar e principalmente por aqueles que não tiveram a sua oportunidade a tempo.

Infelizmente, longas listas de espera e escassez de órgãos para transplantar fazem com que um insuficiente renal espere em média quatro anos por um transplante renal e alguns doentes morram em lista de espera. Quem espera um transplante cardíaco, de fígado ou de pulmão não tem uma técnica que lhe permita sobreviver muitos anos nessa espera como acontece na diálise para os que esperam um rim.

Ao longo destes anos em que comemorámos o dia do transplante muitos acontecimentos, uns melhores outros piores, marcaram a transplantação em Portugal. Os números tiveram altos e baixos e recuperam agora num ritmo que desejo sinceramente se mantenha ascendente. Portugal tem lugar de destaque nos números da doação e da transplantação mas ainda assim não chega, pois a alta incidência de doença renal avançada que temos e precisa de mais transplantação renal.

Entre 2011 e 2014 os números afundaram de forma dramática. Outras soluções podem contribuir para inverter esta tendência, como o aumento do transplante renal de dador vivo e da colheita em dadores em paragem cardiocirculatória. A transplantação de rim de dador vivo permite o maior sucesso clínico e pode aumentar as taxas de transplantação renal mas tem uma expressão demasiado reduzida em Portugal. A Sociedade Portuguesa de Transplantação realizou a única grande campanha nacional com o mote "Doar um rim faz bem ao coração". É urgente relançar as campanhas de informação sobre a doação em vida e cabe ao Ministério da Saúde, em conjunto com as sociedades científicas pegar neste assunto.

As equipas de coordenação, de colheita de órgãos e também as de transplantação, mantiveram sempre o seu esforço em prol da actividade, muitas vezes com condições longe das ideais e com dificuldades acrescidas por mudanças ao sabor da política e por reformas que tardam mas seguramente vêm a caminho. A experiência adquirida das equipas no terreno permite que Portugal mantenha um nível destacado na transplantação dos diferentes órgãos com uma qualidade técnica e científica irrepreensível.

Portugal tem centros de referência de transplantação renal, hepática, cardíaca e pancreática mas carece duma reorganização urgente da coordenação hospitalar para a doação e colheita de órgãos e da rede de unidades de transplantação renal e cardíaca. Os recursos humanos para a transplantação são altamente especializados e face ao crescente número de transplantados precisam de reforço e incentivo.

Os direitos dos transplantados consagrados na lei são irregularmente cumpridos por algumas administrações hospitalares como ouvimos de viva voz pelas suas associações. A descentralização do seguimento dos transplantados renais por serviços de nefrologia com competência para tal tem que ser rapidamente regulada e implementada. Os doentes não podem continuar a deslocar-se em enormes distâncias para consultas de seguimento em unidades de transplantação de hospitais centrais completamente sobrelotadas.

Um esforço concertado de investimento lúcido na transplantação em Portugal permitirá a liderança não apenas nos números mas também na competência científica e nos resultados clínicos. Podemos continuar a ser campeões sem necessidade de condecorações.

Assistente Graduado de Nefrologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

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