Bem-aventurados os esfomeados e sedentos de justiça*

Sem justiça o que fica na alma é fel. Só a fome e a sede de justiça darão paz.

A justiça é um tema menor; parece que não dá votos aos partidos, só o sensacionalismo mediático lhe dá cobertura em termos criminais e de família e menores. A Assembleia da República aprova leis e tudo fica na mesma ou pior.

O que tem vindo a ser feito tanto antes como depois da chegada e partida da troika está impregnado de uma visão mercantilista que no fundo tal como na Educação, na Saúde, na Função Pública visa colocar todos contra todos, professores contra pais e alunos, médicos e enfermeiros contra doentes, juízes contra advogados ou funcionários judicias para que do alto do Estado se leve o pouco de muitos para fazer muitíssimo e drená-lo para outros fins como o de pagar os desmandos do setor financeiro. Haverá um Leviatan que de tal tratará.

O novo governo de António Costa dá sinais de querer parar este caminho. Serão levados à prática. Esperemos agindo para que assim seja.

O tempo presente encerra tremendas contradições. Por um lado, a possibilidade de os cidadãos verem realizada a sua aspiração à justiça e ver respeitada a lei que deve determinar o comportamento humano em termos de Estado de direito democrático.

Por outro lado, há uma espécie de instinto para os mais fortes se apoderarem de tudo o que os rodeia incluindo a própria justiça, tratando-a como uma mercadoria, sujeita à lei da oferta e da procura.

As tábuas, os códigos, tão antigos, como o de Nabucodonosor, aí estão a confirmar o caminho percorrido para se chegar aqui. E neste longo caminho o homem logrou que a justiça passasse a ser encarada como um elemento essencial para se viver nas sociedades modernas.

Na casa da justiça, acabam (ou deviam acabar) as diferenças étnicas, religiosas, sociais, culturais. O Estado chamou a si a função de punir os agentes que cometem crimes, de regular os conflitos que opõem os cidadãos entre si, ou a administração aos cidadãos.

Essa foi uma das maiores conquistas – a de os cidadãos serem julgados por magistrados inamovíveis de acordo com o artigo 216º, e por tribunais independentes conforme artigo 203º ambos da Constituição da República Portuguesa.

A atual tendência dominante de que tudo tem que dar lucro não pára às portas dos tribunais. A perspetiva dos tribunais arbitrais é fazer dinheiro, obter lucro, independentemente de eventuais juízos diversos que se possam fazer sobre cada um dos centros de arbitragem.

Há que estar aberto a processos em que os intervenientes processuais por sua única e exclusiva vontade avancem para formas resolução de conflitos fora da área estatal. A complementaridade tem de ser a exceção e não a regra.

O Estado não deve abdicar de ser a entidade que assegura o funcionamento da complexa máquina judiciária. A privatização da justiça não vai de assentada, vai passo a passo, ontem a ação executiva, depois os inventários, e amanhã, quem sabe amanhã os tribunais comerciais, as cadeias, e que mais?

A ação executiva foi privatizada e tudo encareceu impedindo muitos cidadãos de fazerem valer os seus títulos por manifesta falta de meios económicos. Acresce que em nome da celeridade o que aconteceu foi um encravanço monumental que quase paralisou a ação executiva. Tudo em nome do “vil metal”.

Esta medida liga-se ao encarecimento brutal das custas judiciais que deixa os cidadãos sem possibilidade de aceder a um dos mais elementares direitos humanos – o de ver realizada a justiça. Até para efetuar citações, em muitos casos, os tribunais se servem dos agentes de execução. Há que alterar esta situação sob pena de o Estado se locupletar à custa da cidadania.

Se o Estado não é capaz de assegurar o exercício da justiça voltaremos em novos modos (os tempos são muito diferentes) a situações como as que levaram D. João II a enviar contra os senhores feudais os juízes de fora para que a justiça não fosse sempre realizada a favor dos mais fortes.

A justiça é um direito que assenta numa aspiração que o ser humano persegue há milénios. Recordemos o Evangelho segundo São Mateus…”Bem- aventurados os que têm fome e sede justiça”.

Uma sociedade moderna tem de se fundar na igualdade dos cidadãos perante a lei e só o Estado está em condições de a assegurar na medida em que garante uma magistratura independente, com condições para em consciência limpa fazer aplicar a lei em nome do povo que através dos seus representantes na Assembleia da República a aprovaram.

 A justiça, quando exercida com elevados padrões de apego ao desempenho de uma das mais nobres atividades humanas por homens e mulheres vocacionados para esse fim, reconhecidos espiritual e economicamente pela comunidade e sobretudo pelos governantes, assume um relevo estratégico fundamental na obtenção de uma paz social esclarecida e assumida por todos.

As dificuldades que resultam da crise económica e financeira que o país vive não deveriam ser justificação para a falta de meios com que os tribunais se debatem, desde o TC aos julgados de paz e aos funcionários judiciais.

Quando o cidadão entra numa sala de tribunal degradada, ou numa prisão do género medieval, é a própria autoridade do Estado que se degrada. Quando essa imagem refletida é degradada pode afirmar-se sem medo de exagerar que a sociedade está enferma. E de tal modo assim é que não há mais de três décadas os juízes eram elementos que mereciam a confiança dos cidadãos; hoje essa maioria que depositava confiança mudou.

E a responsabilidade não é do poder judicial, é de todos, sobretudo do poder político ao negar na prática o que prometeu criando desalento e desesperança.

É nestas situações graves de crise económica, financeira e espiritual que aparecem os arautos do individualismo e do populismo que pode conduzir à tomada de poder dos que mais possuem, dos multibilionários ou seus apaniguados para subverter os princípios herdados do renascimento, do iluminismo, das revoluções dos séculos XIX e XX que vieram calibrar as sociedades reconhecendo (algumas tardiamente) os direitos individuais e todos os outros designadamente, sociais, culturais e ambientais. 

Vários governos têm vindo a privatizar áreas da administração da justiça e as justificações vão todas na mesma linha: excesso de pendência e número reduzido de magistrados e de funcionários judicias. As lógicas governamentais alegam junto de uma população enfraquecida na cidadania e nos rendimentos que a passagem de setores do Estado para a os privados levará à poupança de recursos.

A ideia que uma entidade privada pode regular os conflitos entre os cidadãos ou entre a Administração e os cidadãos é uma confissão da incapacidade do Estado se afirmar como a instituição capaz de assegurar o exercício da Justiça. Não se defende nenhuma ideia redentora do Estado e há a consciência do seu imenso poder capaz de esmagar a” insignificância” do indivíduo em si.

Apesar de tudo, hoje o Estado não é um aparelho homogéneo nas mãos do Príncipe ou do ditador ou de um qualquer Leviatan. Um Estado de direito democrático calibrado com os diversos poderes (legislativo, judicial, mediático, opinião pública) não pode deixar de ter em conta diversos interesses em conflito. E não se vislumbra que outra entidade, apesar dos defeitos, possa, em última instância, estar mais vocacionada para dar respostas na defesa do interesse público como prevalecente sobre os interesses particulares.

O Estado, independentemente da sua bondade, responde perante todas e todos. A instituição particular depende dos sócios ou dos acionistas que querem lucros.  É por isso que a maioria das privatizações na justiça são um retrocesso civilizacional.  

Vivemos um tempo estranho. Por um lado, as tecnologias levam-nos a um mundo único e maravilhoso…só que o homem é mais do que tecnologia, é alma, alegria, solidão, tristeza, solidariedade, compaixão. Sem justiça pode viver-se ou sobreviver-se. Com justiça pode viver-se em paz e de bem com todos os cidadãos e o mundo. Sem justiça o que fica na alma é fel. Só a fome e a sede de justiça darão paz. Daí a importância de obrigar os governos a darem à Justiça os meios que fazem a Justiça.

*O Sermão da Montanha, Evangelho de São Mateus, 5.6

 

 

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