Avesso do amor que se esconde

1. A minha casa é a última antes da colina do castelo. Saio sem dar volta à chave (seja como for, a janela abre por fora). Desço a rua, cal no escuro, por cima estrelas, esta escala de cidade em que ninguém se tranca mas também ninguém incomoda, silêncio habitado. Nem a Rodoviária apagada quer dizer fim. No único ponto de luz (uma tasquinha), dizem-me que sim, ainda vai passar o autocarro das 21h30 para Lisboa. Que eu espere do outro lado da rua, junto ao muro do cemitério. Jazigos à beira de plátanos, os mortos dormem bem, parece. Antes da hora surge um letreiro luminoso na curva. O motorista desce, abre a bagageira. Um bilhete para Lisboa, por favor, digo. Compra quando chegar, mas se não quiser também não ligo a isso, diz ele. O Alentejo fica no futuro. E cá vamos, a estrada é linda.

2. Às 9h30 da manhã seguinte, estou na Gulbenkian a ouvir Fernando Rosas no começo do debate “Ditadura portuguesa, porque durou, porque acabou” (organizado por Irene Pimentel, José Pedro Castanheira, Jacinto Godinho, Hélder Macedo, uma aliança academia-imprensa). Rosas fala na “inculcação” do autoritarismo em todas as frentes, incluindo violência preventiva, para a dominação das consciências. Pedro Ramos Pinto diz que a indiferença da maior parte da população ajudou a sustentar a ditadura. António Nóvoa defende que o salazarismo engendrou “uma escola mínima, medíocre, fortemente doutrinária”, para manter cada um no seu lugar. O salazarismo também se define pelo ódio à política, a par de um ascetismo religioso e de uma devoção pelo saber técnico, resume Luís Trindade, que encontra ecos disto na actual democracia: o papel dos economistas, e sobretudo a centralidade de Cavaco Silva. De resto, reforça, o salazarismo como atmosfera social vai muito além da figura de Salazar.

3. A crónica inteira não bastaria para o debate, garimpo só umas notas. Cunhal não era contra a luta armada, as suas reservas eram apenas tácticas, quanto ao momento oportuno (Pacheco Pereira). “Passei seis anos a dormir numa cela de 2 por 2,5”, “sou angolano negro e o português é a minha língua, mas não sou lusófono” (Lopo do Nascimento). “Os brancos eram os naturais de Moçambique, os negros eram os indígenas, ou seja, selvagens” (Joaquim Chissano). “Há um 25 de Abril na Igreja que precede o 25 de Abril na sociedade” (D. Manuel Clemente). O repórter suíço Werner Herzog faz um relato hilariante do pré e pós-revolução. Ana Maria Caetano e Otelo Saraiva de Carvalho, antípodas no estilo, coincidem cordatamente, a filha do ditador a contar como foi bem tratada pela democracia, o coronel a contar como o ditador foi bem tratado pelos oficiais que o depuseram. Havia nesses homens aquilo a que Eduardo Lourenço chama uma “candura”, revolucionários abdicando do poder. Mário Soares sublinha que o seu arqui-inimigo Salazar teve pelo menos a virtude de nunca ter mexido em dinheiros públicos, define Caetano como ideologicamente “fascista mesmo” e remata: a ditadura acabou porque não podia deixar de acabar. Não chego a ouvir Jorge Sampaio, tenho de apanhar o último autocarro.

4. No dia seguinte, estou novamente na Rodoviária do Alentejo, desta vez à espera da amiga carioca em visita. Tempo que baste para um update: cerca de 100% das adolescentes usam calças justas até ao tornozelo e transformam o meu casaco de cossaco em bombo da festa (aquilo é um casaco ou um vestido?! LOL). Dupla ditadura, a adolescência, de fora para dentro e vice-versa.

5. Subindo para o castelo, a minha amiga Maria repete: ca-ra-lho, que lugar é esse. Forma carioca de admiração, como dizer: muito foda. A cidade cabe num olhar, extensão de se fazer a pé, ruínas com heras, depois muralha, ameias, vista de planuras. Não fossem as oliveiras, podia ser a Escócia (mesmo nunca tendo ido à Escócia). Não fossem as oliveiras e este Sul nítido: vermelho-papoila, verde, azul, amarelo, branco. Antes de ser noite, sentamo-nos para umas migas de grelos, um polvo. A Maria acha que é o seu polvo da vida e pergunta o que são grelos. Nunca vi grelos no Brasil, é como pão de verdade.

6. Então dia 25 de Abril de 2014 acordo no Alentejo. À hora de almoço, a Rodoviária está vazia. Bilheteira fechada porque é hora de almoço. Aqui, as coisas fecham à hora de almoço como há 40 anos. Muitas coisas são como há 40 anos, muitas mais não, por exemplo, a câmara ser comunista e eu não estar presa. É o que digo a um amigo que me manda uma mensagem, há 40 anos estaria presa. E ele responde, e eu não estaria cá. Não, Cavaco não é Salazar, a democracia não é a ditadura, as diferenças fazem toda a diferença. Já o salazarismo está no meio de nós, e isso não são lojas fechadas à hora de almoço.

7. Há anos que não descia a Avenida da Liberdade. Além da carioca em visita, há uma carioca lisboeta, ambas estranham o silêncio. Com três anos e meio de Rio de Janeiro, eu também. Parece-me muita gente mas quieta. É verdade que as últimas manifestações a que fui tinham polícia de choque, gás lacrimogéneo, Black Bloc, correria. Isto é uma festa (e uma manifestação, não?). Talvez tenhamos começado a descer tarde (o bloco d’As Toupeiras, com 91 cartazes pintados à mão, ainda virá depois, e nem assim o vejo). Chegando ao Terreiro do Paço, o melhor é esperar. Chaimites, camuflados não me comovem, mas virá um helicóptero de porta aberta. Trinta mil cravos caindo do céu é uma coisa. Foi.

8. À noite, festa na cidade, que mais lá para o fim da noite parece festa na aldeia, uma pista de tantas mulheres e cerca de um solteiro hetero. Vejo que Lisboa partilha com o Rio de Janeiro essa interrogação cósmica, ontológica mesmo: onde estão os homens? Como não há solução, cantamos E depois do adeus em versão can-can. Uma carioca veio, a outra ficou em casa. Fazendo o quê?, pergunto. Namorando, responde. Chama-se estar muito à frente.

9. Agora, o sol passa através da copa do diospireiro, que árvore. Vamos pra Abril em Maio, uma falua em Istambul, coentros, rabanetes, tudo o que se planta, tudo o que pica. Carlos Drummond de Andrade escreveu que em Maio o próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados / não está certo de ser amor. Mas lá Maio é Outono e cá é o avesso. Então, vermelho, em cheio na cabeça.     

Foto
Alexandra Lucas Coelho

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