Assoreamento no Mondego aumentou impacto das cheias em Coimbra

Sistema de protecção do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha não estava preparado para suportar pressão da água.

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A água invadiu o mosteiro posto a descoberto no final dos anos 90 e destruiu equipamentos e documentos Adriano Miranda

Na sequência das cheias de 2001 registadas em Coimbra, um estudo solicitado pelo ministério do Ambiente à Ordem dos Engenheiros e apresentado em 2002 aconselhava algumas medidas de prevenção. As recomendações passavam pelo desassoreamento do Mondego, por um sistema de alerta mais eficiente e pela subida da quota.

O docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Alfeu Sá Marques, co-autor do estudo, refere que algumas das recomendações foram seguidas, mas que outros factores fazem com que as inundações de 11 de Janeiro e do último fim-de-semana tenham atingido esta dimensão. Ainda assim, as principais lacunas aponta-as às “falhas de planeamento” e à “falta de revisão de procedimentos”.

Alfeu Sá Marques, que fez parte da comissão de acompanhamento do programa Polis – que requalificou várias áreas das margens Norte e Sul de Coimbra na década passada – explica que o sistema designado por Aproveitamento Hidráulico do Mondego não é suficiente para impedir as consequências das cheias.

O sistema composto a montante de Coimbra pelas barragens da Aguieira, Fronha e Raiva e a jusante pela ponte-açude está construído de forma a para suportar 1200 metros cúbicos por segundo. Segundo os dados recolhidos pelo docente, no passado fim-de-semana o valor registado andava na ordem dos 2000 metros cúbicos por segundo.

O especialista em hidráulica e recursos hídricos explica que, para além de não se ter procedido ao desassoreamento do Mondego, foram construídas duas pontes no rio nos últimos quinze anos (a ponte pedonal Pedro e Inês e a Ponte Rainha Santa Isabel) que contribuem para a subida do seu caudal.

Factores como “os incêndios florestais, a impermeabilidade dos solos causada pela construção de edifícios e estradas” ajudam a que, “em picos de precipitação”, a subida do nível das águas seja mais intensa.

A Lusa dá conta de que, na reunião do executivo camarário desta segunda-feira, os representantes das várias forças políticas concordaram em apontar o assoreamento do Mondego como principal causa da dimensão das cheias.

Na reunião, o município emitiu uma posição sobre a responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) no processo de desassoreamento do Mondego. Na posição que consta de um parecer levado à reunião, a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) considera “inaceitável que a APA se demita de ser o responsável pelo desassoreamento do Mondego”. O protesto deve-se ao facto de a autarquia surgir identificada no Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Vouga, Mondego e Lis como responsável pela medida de desassoreamento do rio em Coimbra.

Em resposta, a APA enviou ao PÚBLICO o acordo celebrado com a autarquia em Março de 2013. No texto pode ler-se que foi acordado entre as duas entidades que seria a CMC a “mandar proceder, através de expensas suas, aos estudos complementares previstos na Declaração de Impacte Ambiental”. O município adjudicou um contrato à empresa Cenor, Consultores, S.A. dois anos depois, em Julho de 2015, por um valor de 53,5 mil euros e um prazo de execução de dois meses e meio.

Presidente da autarquia à data da assinatura do entendimento com a agência, o social-democrata João Paulo Barbosa de Melo afirma que este estudo “é fundamental para fazer o desassoreamento do Mondego”. Barbosa de Melo conta que, “como a APA não tinha dinheiro”, o município “ofereceu-se para pagar os estudos que faltavam”. O agora vereador da oposição diz que ainda não conhece o documento.

Em Outubro de 2013 a câmara mudou de mãos e o socialista Manuel Machado diz que, até à data do contrato com a Cenor, foram feitos “estudos a vários níveis”, nomeadamente em parceria com o IteCons, um instituto de peritagens técnicas da Universidade de Coimbra, e que foi dando ao executivo camarário conta do processo. Barbosa de Melo garante não ter tomado conhecimento.

Manuel Machado explica que o estudo adjudicado em Julho “agrega duas intervenções necessárias em simultâneo”. O autarca descreve que as operações de desassoreamento têm que ser levadas a cabo em conjunto com a estabilização dos taludes sob pena de, caso tal não aconteça, os muros nas margens do Mondego caiam. Estes trabalhos estão estimados entre os 10 milhões de euros e os 16 milhões.

Mosteiro não estava preparado
Numa situação sem paralelo desde que abriu ao público em 2009, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha ficou submerso pela segunda vez no espaço de um mês. Se na primeira vez a responsável pelo monumento apontou o dedo à EDP pelas descargas abruptas efectuadas pela barragem da Aguieira, desta vez, Celeste Amaro da Direcção Regional da Cultura do Centro (DRCC), refere que a inundação se ficou a dever “ao aumento do caudal do rio”.

 Apesar de ter sido construído à volta do mosteiro um sistema de protecção, a directora da DRCC reconhece que, “o sistema não estava desenhado para conter este volume de água”. Celeste Amaro diz que a água “entrou por todo o lado”, incluindo portas de contenção e tampas de águas pluviais e fala da necessidade de “rever todo o sistema”.

Uma ensecadeira foi construída mesmo antes de as obras de reabilitação do espaço terem lugar. Do total de 16 milhões de euros gastos para recuperar o espaço, o sistema de protecção custou 6 milhões.

 “A ensecadeira já estava em construção quando ganhámos o concurso público, em 2002. A nossa tarefa era também escondê-la, ou disfarçá-la”, diz Alexandre Alves Costa, lembrando que a intervenção que desenhou para o museu, com Sérgio Fernandez, implicou “elevar o espaço de recepção para uma cota superior à da igreja e das ruínas do claustro, em mais de dois metros”. Os dois foram responsáveis pelo projecto de recuperação e valorização do Mosteiro, que abriu em 2009.

Sobre o investimento de seis milhões de euros no equipamento hidráulico, acha que ele “diminui a possibilidade de a água entrar por capilaridade”. Mas Alves Costa e Fernandez admitem que “quando a água do rio sobe acima de um certo nível, não há nada a fazer”. Apostou-se na “tentativa de criar uma moderação dos efeitos da água, mas nunca resolver isso em definitivo”, dizem.

Artur Corte-Real, que esteve ligado ao projecto de recuperação do Mosteiro desde a década de 1990 e que se demitiu em 2014 do cargo de director de serviços da DRCC, não quis pronunciar-se sobre o assunto.

Ressalvando não conhecer o processo por dentro, e não ter feito parte da equipa que nele trabalhou, o arqueólogo Francisco Sande Lemos recorda que a intervenção e as escavações no mosteiro tinham em vista fazer a reprodução virtual do sítio, e depois voltar a enterrá-lo. “Esta era a boa solução; é um método utilizado em muitos países, que consiste em reenterrar os monumentos quando eles estão sujeitos a este tipo de inclemências do clima, numa região de grande pluviosidade”, nota o arqueólogo da Universidade do Minho, que já defendeu também esta solução no Facebook.

Celeste Amaro defende que a recuperação e abertura. “É a opção mais correcta, pois faz com que o público possa usufruir daquele espaço, mas se calhar a mais cara”, afirma.

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