Arquitectos versus engenheiros

Não pode a sociedade descartar por decreto todos aqueles que contribuíram positivamente para o seu desenvolvimento.

Sou engenheiro civil e exerço a profissão em regime liberal, sobretudo na área de projeto e consultadoria. Sou um dos cerca de 150 abrangidos pelo projeto-lei 495, discutida e aprovada na última sessão da Assembleia da República, que visa a reposição dos direitos relativos à possibilidade de os engenheiros civis formados pelas faculdades de Engenharia do Porto, Braga e Coimbra e pelo Instituto Superior Técnico, de Lisboa, com cursos iniciados antes de 1987, assumirem projetos de arquitetura, conforme estabelecido pela Diretiva Europeia n.º 2005/36/CE.

Acompanhei de perto toda a campanha de preparação e sensibilização dos deputados com vista à sua aprovação, bem como da cerrada oposição feita pelos arquitetos e pela sua Ordem, tendo-me abstido de intervir diretamente porque achei que a discussão estava a baixar demasiadamente de nível, de ambas as partes.

Não me desloquei à Assembleia da República por decisão pessoal, muito embora esteja extremamente grato ao grupo que liderou o processo, que o fez com afinco e determinação. Infelizmente, nesta como noutras grandes decisões importantes para a sociedade, o egoísmo, na defesa dos próprios interesses, de forma corporativista, ultrapassa em muito a parte séria das questões e deixa de lado o que é mais importante para os cidadãos.

Pronuncio-me com todo o à-vontade porque, penso, devo ter sido dos poucos engenheiros que subscreveram a petição, feita por volta de 1987, para que a “arquitetura fosse só para os arquitetos”. Movimento esse que só em 2009 deu frutos, com a aprovação da Lei 31/2009.

Pode ser paradoxal que hoje esteja aqui a defender uma posição diversa. Mas não, continuo a pensar da mesma forma, de que a arquitetura deve ser feita por arquitetos. Sempre trabalhei em parceria com estes, em equipas multidisciplinares; daí, talvez, me sentir um pouco melhor conhecedor da “arte” que muitos dos meus colegas engenheiros.

Só que não estava à espera que o diploma fosse tão drástico. E por duas razões bastante diversas:

1. A primeira porque cortou com direitos adquiridos de profissionais, e não me refiro só aos engenheiros civis (leia-se “licenciados”) que tinham feito toda a sua carreira nessa área, vendo-se de um momento para o outro sem trabalho, a grande maioria em idade de já não ser capaz de uma conversão;

2. A segunda porque há “obras e obras”.

Escalpelizando a primeira das razões invocadas, importa dizer que a evolução da sociedade se faz de forma paulatina, e não por decretos que impõem barreiras temporais abruptas. A intervenção dos engenheiros, dos engenheiros técnicos e dos agentes técnicos de arquitetura e engenharia teve o seu pico em época em que não havia arquitetos em número suficiente para dar resposta às solicitações.

Desenvolvo a minha atividade num distrito, Viana do Castelo, em que, no meu início de carreira, em 1982, não havia qualquer gabinete de arquitetura em regime liberal, os projetos de dimensão significativa, fossem de iniciativa pública ou privada, eram feitos por arquitetos das câmaras municipais, que uma ou outra ia começando a ter nos seus quadros ou em regime de consultoria, ou então entregues a gabinetes das grandes cidades.

E o “boom” da construção civil, fruto do desenvolvimento de que o país finalmente usufruía, bem como da necessidade (legal) de projeto para licenciamento de obras, tinha começado poucos anos antes. Tendo a quase totalidade dos projetos sido desenvolvida pelos profissionais atrás referidos, e antes da exigência de licenciamento, portanto sem projeto, sob orientação dos mestres-de-obras.

Ora, com melhor ou pior resultado estético, e só este pesa na discussão, uma vez que aos profissionais em causa era, e continua a ser, reconhecida capacidade técnica, as cidades e aldeias desenvolveram-se sob a sua batuta. Não pode a sociedade descartar, de forma pura e dura, por decreto, todos aqueles que contribuíram positivamente para o seu desenvolvimento. Como não pode um país que se desenvolve à custa de imigrantes enxotá-los quando deixam de fazer falta.

No que toca à segunda razão, uma vez mais impera a falta de bom senso; quando digo que há obras e obras, refiro-me à sua dimensão e impacte na paisagem. Conforme a legislação em vigor, é necessário “”projeto“” (repetição propositada das aspas) para licenciar um muro de vedação, ou a abertura de uma entrada para um prédio, ou para a construção de um galinheiro, ou de uma garagem. Ou para a alteração de utilização (vulgo mudança de destino) de um qualquer espaço comercial ou de serviços. Ora isto não é, ou não devia ser, um “projeto de arquitetura”. Mas, de acordo com a lei, é. E só pode (ou tem podido, nos últimos três anos) ser assumido por arquitetos.

Pior ainda, o projeto de licenciamento de um qualquer pavilhão comercial ou industrial, mesmo que como “comunicação prévia”, designação dada aos processos para obras em terrenos já destinados a esse fim em loteamento, com mancha de implantação, área de construção e volumetria previamente definidas em regulamento, inclusive com projeto-tipo já aprovado, mesmo estando, esses parâmetros, eventualmente definidos por um engenheiro, que pode, legalmente, ser autor do projeto de loteamento, não pode, pelo mesmo engenheiro, ser subscrito na fase de licenciamento da construção.

É evidente que me preocupo com os jovens arquitetos, que terão parte do seu potencial de mercado absorvido por aqueles outros técnicos, como me preocupo com todos os outros jovens sem emprego, com ou sem formação superior. Mas não será à custa daquelas obras de pequena dimensão que os jovens arquitetos vão fazer carreira, coitados deles se assim fosse, e que ausência de realização sentiriam.

Qualquer profissão tem que se impor por mérito, e não por decreto; há muito que a sociedade recorre aos arquitetos, quando a sua participação se justifica. E não se preocupem os mais puristas com a defesa da paisagem urbana: aquilo que de mau tem sido feito há-de cair por si, ou por decisão dos seus proprietários, que lhe hão-de reconhecer o desmérito.

A Terra tem milhões de anos, os erros arquitetónicos têm poucas décadas, e por vezes passam a ser objeto de estudo, às vezes até classificados; não posso esquecer as “casas dos brasileiros”, de princípios e meados do século passado, fortemente condenadas na minha juventude e hoje dignas de preservação, defendida pelos arquitetos.

Reconheço que muitos erros foram cometidos pelos técnicos referidos, eu próprio me envergonho de alguns meus, mas uma boa parte dos arquitetos os terão cometido também, então se analisarmos o portfolio de alguns dos formados pelas escolas de arquitetura mais recentes!

Aliás, os próprios arquitetos saídos das escolas de arquitetura mais conceituadas do país o reconhecem, censurando-se inclusive entre si, apesar de as escolas terem reputação mundial; claro que aqui a discussão é de nível mais elevado, mas o que é realmente errado não deixa de o ser.

Por fim, confesso, nada me move contra os arquitetos, adoro trabalhar com eles e admiro a sua capacidade criativa, recebo e acarinho todos os recém-formados que me vêm pedir apoio no desenvolvimento das soluções estruturais e das instalações interiores, e para quem quase sempre acabo por encaminhar trabalho.

A sociedade sabe adaptar-se... e quem tem mérito vê-lo-á reconhecido.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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