Aristides de Sousa Mendes: desobediência, gratidão, memória, raízes

Cumprem-se 50 anos sobre o reconhecimento do cônsul Aristides de Sousa Mendes como “Justo entre as Nações”. Outros 30 sobre o pedido de desculpas do governo português à família e sobre a promoção póstuma a embaixador. E 76 anos sobre os nove dias em que o diplomata ajudou 30 mil pessoas a sobreviver

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Aristides de Sousa Mendes DR

Foi pela pressão das comunidades israelitas, em Portugal e nos EUA, junto das altas instâncias judaicas, americanas e portuguesas, que se recuperou a memória de um cônsul remetido ao esquecimento. Um homem que deliberadamente colocou em risco a sua carreira e a sua vida ao desobedecer a ordens directas do Governo salazarista, em plena Segunda Guerra Mundial. O cônsul assinou 30 mil vistos a refugiados, judeus ou não, que vinham fugidos da morte certa — da guerra ou dos campos de concentração.

14 de Junho de 1940: Paris é ocupada pelas tropas nazis, e o Governo transfere-se para Bordéus, onde trabalhava o cônsul Aristides de Sousa Mendes. Milhares de pessoas deslocam-se para sul. A França ainda era livre. Três dias depois, os franceses assinam a rendição à Alemanha nazi. Sousa Mendes toma em mãos a missão de tentar salvar tantos refugiados quanto possível, indo contra as ordens da circular n.º14, emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa.

Entre 17 e 20 de Junho de 1940, Sousa Mendes trabalhou sem pausas, apoiado por um rabi polaco, Chaim Hersz Kruger, e os milhares de vistos que assinou serviriam para garantir uma passagem segura para Portugal, e de Portugal para qualquer outro porto seguro. Quando os refugiados saídos de Bordéus chegavam a Hendaia (na fronteira franco-espanhola), davam de caras com uma fronteira fechada e autoridades que invalidavam os seus vistos. A informação da insubordinação de Sousa Mendes chegara a Lisboa e com isso tinha sido revogada a posição de cônsul. Então, o diplomata acompanhou os refugiados até Biriatu, um pouco mais para leste, uma fronteira terrestre menos conhecida e mais isolada, onde ainda não havia chegado a informação da desobediência do cônsul. A acção de salvamento duraria mais seis dias, até 25 de Junho.

Pelas suas acções, Sousa Mendes foi condenado por Salazar a uma vida de miséria. Perdeu o trabalho, não se pode reformar, nem encontrar outro trabalho. Perdeu a Casa do Passal, em Cabanas de Viriato. Os seus filhos foram proibidos de ingressar no ensino superior. O único apoio que a família Sousa Mendes teve foi das comunidades judaicas, que ajudaram alguns dos seus filhos a partirem para os EUA e o Canadá. O cônsul morreu em 1954, vítima de múltiplos AVC, remetido ao esquecimento.

Foi em Bordéus que Sousa Mendes conheceu o rabi Kruger, a quem ofereceu “todos os confortos da sua casa”, contava o religioso num depoimento de 1966. Recusou, no entanto, o convite, por querer permanecer junto dos milhares de outros judeus que estavam na cidade à procura de uma forma de escapar. Terá sido aí, a 17 de Junho de 1940, que Sousa Mendes se comprometeu em salvar tantos quantos refugiados pudesse, judeus ou não, ao emitir vistos que contrariavam as ordens de Lisboa.

Depoimento do rabi

O depoimento do rabi Chaim Kruger surgiu no ano em que o cônsul foi reconhecido como “Justo entre as Nações” pelo Estado de Israel. Este título honorífico é atribuído às pessoas não judias que usaram “a sua vida, liberdade, ou estatuto” para salvar uma ou mais vidas judias durante o Holocausto. Há mais de 25 mil “justos entre as nações” dos quais três são portugueses. Aristides de Sousa Mendes foi o primeiro a receber o título, postumamente, em 1966. Mas só 20 anos após a atribuição deste título é que o governo português reconheceu oficialmente as acções do cônsul. Foi apresentado um pedido de desculpas à família Sousa Mendes e Aristides recebeu o estatuto de embaixador e a medalha da Ordem da Liberdade.

Em memória de Aristides decorreu ontem uma celebração dupla. A Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, onde Aristides passou grande parte da sua vida e tinha a sua casa familiar, celebrou 16 anos como Fundação Aristides de Sousa Mendes. E em Nova Iorque foi inaugurada a exposição Portugal, a última esperança: os vistos para a liberdade de Sousa Mendes.

No ano em que se cumpre meio século sobre a atribuição do título de “Justo entre as Nações” (em Outubro de 1966), a Federação Sefardita Americana, em colaboração com a Sousa Mendes Foundation, organizou a mostra, no Centro para a História Judaica, incluindo imagens e documentos inéditos.

A Sousa Mendes Foundation, com sede na mesma cidade americana, foi criada em 2010 por descendentes do diplomata e dos beneficiários dos vistos que passou em Junho de 1940.

Alguns dos artefactos em mostra foram cedidos pelo museu A Fronteira da Paz, em Vilar Formoso, outros pelo Instituto YIVO para a Pesquisa Judaica (radicado nos EUA). Há bonecos que vinham nas mãos das crianças refugiadas, fotografias, diários de guerra, e uma troca de cartas entre Joana Sousa Mendes, filha do cônsul, Fred Zinneman, realizador ao serviço da Warner Brothers, e Ilya Dijour, da Sociedade de Apoio ao Imigrante Hebreu (HIAS).

Joana Sousa Mendes enviou a Ilya Dijour, que foi um dos 30 mil refugiados a receber um visto português, uma cópia do livro escrito pelo seu irmão Sebastião de Sousa Mendes e publicado sob o pseudónimo Michael d’Avranches. O livro Flight through Hell é um romance semificcionado sobre a obra humanitária do cônsul em Bordéus e foi aprovado pelo próprio, três anos antes da sua morte. Joana Sousa Mendes enviou o livro a Ilya Dijour, em 1959, e em Abril de 1960 é contactada por Fred Zinneman, realizador austro-americano nascido na Polónia que estava ao serviço da Warner Brothers.

Ideia de guião

Zinneman, na carta enviada à filha do cônsul, descreve as acções de Sousa Mendes como “extraordinárias”, mas explica-lhe que não faria um filme sobre elas, já que eram “demasiado comoventes para serem sentimentalizadas e profanadas por um meio de entretenimento comercial”. Em contrapartida, enviou o livro e uma cópia da carta de Joana Sousa Mendes para Robert Anderson, um aclamado dramaturgo americano. Um mês depois, Ilya Dijour propôs a Robert Magidoff, escritor e jornalista russo expulso do seu país e residente nos EUA, que escrevesse um guião para um filme sobre o cônsul. Dijour ressalva nessa carta que conhecia o rabi Kruger e o próprio cônsul.

Seis anos depois desta troca de cartas, que acabou por não resultar em nenhum filme ou peça de teatro, o Yad Vashem, o Centro para o Reconhecimento e Memória do Holocausto, reconhece Aristides de Sousa Mendes como “Justo entre as Nações”. Um reconhecido estudioso do Holocausto, Yehuda Bauer, descreve as acções heróicas de Aristides de Sousa Mendes como “provavelmente, a maior acção de resgate por um único indivíduo durante o Holocausto”.

Aristides de Sousa Mendes seria, ele próprio, descendente de judeus sefarditas expulsos de Portugal após o decreto de 1496 da Inquisição portuguesa, que determinava que todos os judeus teriam ou de se converter ao cristianismo ou abandonar o país até 31 de Dezembro desse ano. O neto do cônsul, António Pedro Sousa Mendes, não consegue confirmar a ascendência da sua família, mas fala na família “Mendés France”, que descende de judeus que se instalaram na zona de Bordéus no século XV.

A Lei da Naturalização de Descendentes de Judeus Sefarditas, de Março do ano passado, passou a permitir a aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização a pessoas que consigam provar a sua descendência de judeus perseguidos pela Inquisição portuguesa na Península Ibérica. Depende das comunidades israelitas de Porto e Lisboa o reconhecimento dessa ascendência de sefarditas, e apenas depois pode o processo ser apresentado ao Ministério da Justiça. Em Fevereiro, segundo dados do Ministério da Justiça, tinham entrado 834 pedidos certificados pelas comunidades israelitas. Desses, 103 pessoas tiveram os seus casos aprovados e receberam passaporte português.

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