Apneia do sono: Dormir aos pedaços

Ainda não há estudos epidemiológicos em Portugal, mas a apneia do sono parece ter vindo para ficar. São cada vez mais os portugueses que adormecem ao volante, no café, no cinema ou no emprego - quase sempre homens, quase sempre obesos, quase sempre hipertensos. Já há tratamento e a taxa de sucesso até é elevada. Mas muitos doentes só descobrem a solução depois de terem perdido o emprego, o casamento e a auto-estima.

"Raios partam o rapaz... Voltou a adormecer." O rapaz chama-se Joe, vive na Inglaterra vitoriana e é uma das personagens mais emblemáticas de "The Posthumous Papers of the Pickwick Club", o romance de 1836 que marcou a estreia literária de Charles Dickens. À luz dos conhecimentos médicos actuais, Joe é também um típico doente de apneia do sono, uma patologia caracterizada por sucessivas paragens respiratórias. Mas foi preciso esperar 123 anos para que a Medicina conseguisse encontrar a chave para decifrar a sonolência inconveniente de Joe.

Quase meio século depois de ter sido descrita pela primeira vez, em 1959, a apneia do sono dá cada vez mais que falar. Em Portugal, ainda não há estudos epidemiológicos que dêem conta da verdadeira dimensão do problema, mas cada vez mais hospitais públicos abrem consultas do sono. Os especialistas acreditam que os números não devem ser muito diferentes dos de Espanha, onde a doença aflige 6,8 por cento da população. Das 84 perturbações do sono até hoje inventariadas, a apneia é a mais grave. Pelo risco cardiovascular associado - não se morre de apneia do sono, mas a probabilidade de sofrer um enfarte do miocárdio é maior nestes doentes -, e pelo desastroso impacte sobre a qualidade de vida.

Ter apneia do sono significa, na prática, dormir aos pedaços, devido a sucessivas paragens respiratórias. Durante a noite, há músculos que relaxam e mecanismos de controlo que o corpo desliga: é por isso que, nos doentes com apneia, a respiração fica em banho-maria durante dez ou mais segundos e os níveis de oxigénio no sangue caem a pique. Por uma questão de autodefesa, o organismo inicia então um esforço para retomar a inspiração, interrompendo o sono durante uma fracção de segundos. "O microdespertar é um mecanismo de defesa que o organismo põe em marcha para vencer o bloqueio. É o cérebro a tocar uma campainha e a mandar o doente acordar porque não pode passar mais tempo sem respirar", explica João Carlos Winck, pneumologista responsável pelo Laboratório do Sono do Hospital de S. João, no Porto.

De cada vez que a campainha toca, o organismo fica em sobressalto. No caso dos doentes com apneia do sono, a campainha toca cinco ou mais vezes por hora. É o suficiente para arruinar uma boa noite: o organismo nunca desliga completamente todos os sensores e a fase de sono profundo é constantemente adiada. "Toda a gente tem apneias durante o sono - mais de cinco por hora é patológico", esclarece o médico. Não só porque é meio caminho andado para adormecer onde calha no dia seguinte. Nos casos mais graves, a apneia do sono pode provocar acidentes - "ou quase-acidentes", acrescenta - de trabalho ou de viação, perturbações da memória, alterações de humor, desconcentração, disfunção eréctil, hipertensão e até acidentes vasculares cerebrais. Ou o divórcio.

Doença está subdiagnosticada

Embora a doença continue subdiagnosticada e relativamente ausente dos currículos dos cursos de Medicina, os hospitais são cada vez mais procurados por doentes com os sintomas típicos da apneia do sono. Quase sempre obesos, quase sempre hipertensos, quase sempre do sexo masculino: há uma mulher por cada dois homens com apneia do sono, "embora a doença também seja frequente no sexo feminino, sobretudo após a menopausa", sublinha Winck.

Ressonar é, frequentemente, o primeiro sinal de alerta. "Mas a roncopatia, que afecta cerca de 50 por cento da população, não é apneia", adverte João Carlos Winck, enumerando os vários sintomas associados à doença: a hipersonolência diurna que leva um doente a adormecer enquanto fuma ou um motorista de pesados a passar pelas brasas quando pára num semáforo, a hipertensão, os movimentos de luta durante o sono e o cansaço matinal são outras pistas importantes para o diagnóstico da apneia. Como os sintomas são, na sua grande maioria, nocturnos, é vulgar o problema ser detectado por quem dorme com o doente - se tiver o sono leve, o mais provável é que nem sequer consiga pregar olho.

Na origem da apneia do sono pode estar uma constelação de causas múltiplas. Há uma tendência hereditária para a doença, mas ser obeso, ter anomalias craniofaciais, a língua comprida ou deficiências no funcionamento da tiróide ajudam. A menopausa e as doenças das vias aéreas superiores (rinite ou sinusite), assim como um perímetro do pescoço superior a 40 centímetros também multiplicam as hipóteses de se vir a sofrer de apneia. Mas há truques: não dormir de costas, evitar beber álcool antes de ir para a cama e prescindir dos sedativos podem colocar a doença à distância.

Normalmente, é à distância que a doença fica nos primeiros tempos. Quem tem apneia do sono começa por atribuir o cansaço diurno ao excesso de trabalho e raramente encara o problema como uma patologia a tratar quanto antes. Até que um médico de família ou um clínico hospitalar de outra área - Cardiologia, Endocrinologia, Neurologia - junta dois mais dois e envia o doente para uma consulta do sono. "Dos doentes que nos são enviados pelos clínicos gerais, mais de 60 por cento têm, de facto, apneia do sono", confirma João Carlos Winck. Às vezes, vêm tarde de mais: com um divórcio às costas e um emprego em avançado estado de erosão. É uma doença insidiosa, resume o pneumologista do S. João: "Não têm noção do que lhes está a acontecer. Sabem que acordam cansados, alguns têm dores nas pernas e outros acordam com sensação de asfixia. Tenho doentes que já ficaram sem dedos a trabalhar".

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