Ambiguidades deontologicamente desnecessárias

1. Chamaram a atenção para uma profunda discordância com a suposta insinuação do PÚBLICO do caso da ministra Francisca van Dunem ter exercido influência para a obtenção de um visto gold de um seu sobrinho.

Escreve o leitor Augusto Küttner Magalhães

"Parece haver necessidade de puxar à primeira página do PÚBLICO ALGO que vai seriamente envolver a ministra e felizmente e de facto NADA ENVOLVE. (…)  Mas, no caso de artigos como o referido, sinceramente digo que nunca devem aparecer no PÚBLICO e muito menos na primeira página. E não é censura. É não qualidade e não necessidade."
A leitura dos dois textos suscitou-me claros equívocos pouco coerentes com a prática deontológica que deve caracterizar a informação do PÚBLICO. Os respectivos textos-notícia foram publicados em 22.01.2016 e 31.01.2016.
Solicitei, por isso, explicações à jornalista autora das notícias, Ana Henriques.

2. As explicações de Ana Henriques

"Não me compete, como decerto saberá, tomar decisões sobre as matérias que são ou não alvo de destaque na primeira página. (…) Penso que estaremos todos de acordo sobre o facto de os jornais não escreverem exclusivamente sobre situações que comprovadamente constituem crime/ilegalidade, ou seja, sentenças que já transitaram em julgado. A existência de suspeitas fundamentadas (…) é também – e bem – frequentemente alvo da atenção dos jornalistas. E os autos de um processo que ainda não chegou a julgamento incluem documentos onde qualquer jornalista pode encontrar matéria interessante para noticiar. (…) Vejamos então a situação concreta: numa primeira consulta ao processo encontrei indícios de que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, tinha recorrido aos bons préstimos do principal arguido do caso dos vistos gold para tratar de um assunto relacionado com a obtenção da nacionalidade portuguesa de um familiar. Confrontada com a situação pelo PÚBLICO, a governante em causa telefonou-me para explicar o que se tinha passado, confirmando os factos em causa – razão pela qual incluí esta explicação num artigo que fiz sobre esta e outras situações que configuravam casos de maior e menor gravidade no processo em apreço. Numa segunda consulta que efectuei ao processo encontrei indícios de um segundo caso envolvendo igualmente a ministra em questão: escutas em que o principal arguido do caso se queixa de estar a ser pressionado pela então procuradora-geral distrital de Lisboa, Francisca Van Dunem, para a obtenção da nacionalidade portuguesa por um outro familiar seu. Como da primeira vez, questionei o gabinete de imprensa do Ministério da Justiça. Só que recebi de volta uma não-resposta, que incluí, como é evidente no artigo em causa. Fiz ainda mais algumas diligências no sentido de apurar a veracidade das afirmações que constam das escutas da Polícia Judiciária: contactei o requerente de nacionalidade portuguesa, que disse que duvidava que Francisca Van Dunem tivesse intercedido por ele embora não estivesse 100% certo de que isso não tivesse acontecido – afirmações que incluí igualmente no artigo – e tentei, sem sucesso, falar com o advogado do arguido em causa. Perguntar-me-á: perante este cenário seria de publicar a notícia em causa? Na minha opinião, sim. Porque todo o processo dos vistos gold inclui suspeitas de tráfico de influências – bem como outros crimes de maior gravidade – na cadeia hierárquica da administração pública. Temos entre os arguidos um ministro e vários altos dirigentes do Estado. Porque uma não-resposta, perante afirmações desta gravidade (as que constam das escutas) não deixa de ser significativa. E, por fim, porque no caso que noticiei anteriormente a própria ministra me havia reconhecido que as afirmações do principal arguido do caso correspondiam à realidade – e não a mera gabarolice. Não se trata de uma insinuação, portanto. Trata-se de dizer aos leitores que o principal arguido deste processo se queixou de ter sido pressionado por uma alta magistrada portuguesa. E trata-se também de dizer aos leitores que, segundo a análise feita pelas autoridades sobre esta atribuição de nacionalidade, o requerente não tinha, à altura, direito a ela. Diz um dos leitores que “nada envolve” Francisca Van Dunem. Terá ele conhecimento privilegiado do processo, para o poder afirmar com tanta certeza? Permita-me duvidar. Quanto a mim, não tenho certezas. Reuni informação sobre o assunto e questionei todas as partes envolvidas no sentido de chegar a uma conclusão. O resultado é o artigo publicado, cujo interesse jornalístico penso ser sustentado. Mais de 24 horas depois da sua publicação sentiu o gabinete de imprensa da ministra necessidade de dar uma explicação sobre o assunto. Acrescentei-a na versão online do artigo em causa, lamentando que essa explicação não tivesse chegado antes. Nota final: não sejamos ingénuos. Os gabinetes governamentais silenciam frequentemente respostas a todo o tipo de questões dos jornalistas numa tentativa de impedir a publicação de artigos que entendem poder ser-lhes menos favoráveis. Quando não conseguem os seus intentos nem sempre reagem da melhor forma – mas o jornalismo é também ter de lidar com esse tipo de estratégias, por muito que a sua opacidade não devesse fazer parte do funcionamento democrático das instituições."

3. Comentário do provedor

a) Eu bem sei que, normalmente, o autor das peças não tem responsabilidade nos títulos ou chamadas da 1.ª página. Mas isso não implica que, mais uma vez, o provedor não recomende aos responsáveis editoriais que evitem tais procedimentos. Este título falta à verdade. A atractividade dos títulos nunca pode ferir a veracidade dos factos.
b) Identificar como ministra a suposta intervenção ocorrida em 2013, qualidade que só viria a adquirir 2 anos depois, comporta uma falta de rigor.
c) Ora, e é nessa qualidade de ministra que a Ana Henriques vai reportar todos os indícios (?) de intervenção que encontrou. Van Dunem seria então, não ministra, mas procuradora-geral distrital de Lisboa. Uma incorrecção lamentável.  E grave.
d) Estou de acordo que a existência de suspeitas fundamentadas, e com interesse publico, sejam objecto de tratamento por parte de jornalistas. É uma das formas de fazer separar os caminhos da investigação jornalística da investigação policial. Mas, deduzir que há matéria interessante para noticiar, quando a própria Ana Henriques acumula dúvidas quanto às afirmações do arguido (defesa própria, gabarolice?) e às incertezas do eventual beneficiado da intervenção exigia-se maior precaução.
e) Nas duas notícias há evidentes contradições. Foi pena a AH não ter conseguido ouvir o depoimento da advogada Paula Godinho. Na caixa da pg. 27 diz-se: "quem é escutada a meter a cunha é uma advogada". Por sua vez, na legenda da gravura da van Dunem, escreve-se com todas as letras: "Não há qualquer intervenção de Francisca van Dunem sobre os telefonemas de António Figueiredo interceptados pela investigação".
f) O espaço de que disponho rouba-me exprimir outros comentários. Mas, a título de conclusão, quero lembrar que o n.º 14 do Livro de Estilo do PÚBLICO: "O prestígio e a imagem profissional… e política são um valor garantidos no PÚBLICO. Todas as referências a situações desprestigiantes ou desfavoráveis devem ser sustentadas de forma rigorosa (…)". E o n.º 16 estabelece: "Em todas as circunstâncias, o PÚBLICO revela, apura, divulga; jamais denuncia ou persegue."
g) De qualquer modo, estrou de acordo consigo, os gabinetes ministeriais deveriam ser mais explícitos e menos sofistas quando interpelados.

Sugerir correcção
Comentar