Aitor quer ser um “arquitecto de família” para a população do Bonfim

Aterrou no Porto para fazer um doutoramento sobre o processo SAAL e terminou a criar um projecto de reabilitação no oriente da cidade. Arquitecto espanhol quer fazer da sua profissão uma ferramenta de mudança do mundo. Só no Bonfim, o Programa Habitar tem duas mil casas abandonadas para recuperar.

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Neste “laboratório” chamado Bonfim, Aitor encontrou muita matéria-prima para ser trabalhada Fernando Veludo/NFactos
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É um dia importante no PREC do número 295 da Avenida Rodrigues de Freitas. Depois da demolição de paredes, da colocação de 1500 quilos de entulho em sacos e da substituição de vidros partidos, a electricidade foi finalmente instalada no quarto piso do típico edifício portuense. Fez-se luz neste Processo de Reabilitação em Curso — assim gosta de lhe chamar Aitor Varea Oro, o arquitecto espanhol que trocou Valência pelo Porto a sonhar transformar-se no “arquitecto de família” da freguesia do Bonfim. O Programa Habitar por ele delineado abre em Abril um gabinete de atendimento na junta local, mas tem já um projecto-piloto a ganhar forma. Quer ser uma nova solução para proprietários de casas devolutas, profissionais da construção e inquilinos em busca de habitação a preço justo.

Neste “laboratório” chamado Bonfim, Aitor encontrou muita matéria-prima para ser trabalhada: são duas mil as casas devolutas, 20% do total de habitação da freguesia, e ainda um número não calculado de residências que, apesar de estarem habitadas, se encontram em mau estado. Não é um panorama anormal no centro da cidade, que na última década viu um terço da sua população virar-lhe as costas. Mas a batalha não foi dada como perdida no Bonfim: “Temos consciência dessa deslocalização para a periferia e reverter essa saída é uma prioridade. Por isso apoiamos este projecto”, explica o presidente da junta de freguesia, José Manuel Carvalho.

Uma experiência marcante

Aitor era ainda estudante de arquitectura em Valência quando se apaixonou pela arquitectura portuguesa, e pela escola do Porto em particular. Por isso, quando a oportunidade de fazer Erasmus surgiu, não podia ter escolhido outro destino. Estávamos em 2005. Por esta altura, uma pergunta já era persistente na sua cabeça: afinal, qual era a função do arquitecto? Seria “fazer modelos ou fazer outra coisa com os modelos?” Terminado o curso, o arquitecto que um dia sonhou ser jornalista envolveu-se num movimento de moradores e na plataforma “Salvem El Cabanyal”, um bairro de Valência, na altura em risco de ver 1651 casas demolidas para dar espaço a uma nova avenida.

Foi “uma experiência marcante”. Durante um ano, em simultâneo com o doutoramento que havia começado, Aitor “viveu” no bairro e percebeu como as concepções arquitectónicas estavam incompletas. “Estava a fazer-se um projecto que tinha a ver com identidade do território, mas não se identificava a pobreza urbana como parte desse território e não se viam as famílias ciganas como moradores legítimos.” A lição ficou-lhe.

Quando rumou ao Porto para se dedicar a tempo inteiro ao doutoramento sobre o Processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), o projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril, Aitor trouxe esse pensamento na bagagem. Mas então outra realidade se cruzou com ele: o bairro de São Vítor, escondido entre as ruas de São Victor e das Fontainhas, um projecto menos conhecido do SAAL de Siza Vieira. E o objecto de investigação do doutoramento mudou.

“A questão estava ali. Não era tanto o que tinha acontecido, mas qual a relação entre o que se queria visar com o 25 de Abril e o SAAL e a mentalidade ainda existente e visível através das ilhas e do direito à cidade”, contou ao PÚBLICO. Numa pergunta, a investigação explica-se assim: “De que maneira, através da arquitectura, podemos criar cidades mais inclusivas e mudar o mundo?”

Ruína ou oportunidade?

A mudança inicial do seu Programa Habitar está ali, na Avenida Rodrigues de Freitas, vistas para o jardim de São Lázaro. O acordo foi simples: Aitor Varea Oro sugeriu ao proprietário do edifício parcialmente desocupado e em mau estado que cedesse o quarto piso e, em troca, ficasse com um espaço parcialmente refeito. “A recuperação fica muito cara e esta solução permitiu-lhe poupar numa fase prévia: fazer demolições, pôr vidros em falta, limpar o espaço e colocar electricidade”, explica o arquitecto. “Estas coisas mudam o ‘chip’. O proprietário já não pensa que tem uma ruína mas antes uma oportunidade.”

Liliana Lopes veio testemunhar o dia em que se fez luz na próxima morada da associação Espaços – Projectos Alternativos de Mulheres e Homens. Cruzou-se com Aitor em 2015 por um mero acaso. Moradora de uma ilha na Travessa do Campo 24 de Agosto, foi à junta do Bonfim pedir ajuda na recuperação dos espaços comuns. Descobriu que não havia nenhum programa para aquilo que queriam fazer, mas despertou o interesse de Alda Pena, responsável do pelouro da coesão social. “A Alda disse-me: o que eles estão a fazer é muito interessante. Vê se aprendes alguma coisa com eles e se podes aplicar ao resto do Bonfim”, graceja Aitor Varea Oro. A rede começava ali a ser criada.

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O mentor do Programa Habitar foi conhecer a ilha e, quando Liliana lhe falou da procura inglória de um espaço para a associação de promoção de igualdade de género e direitos humanos, da qual faz parte, deu-se o clique. Juntamente com a associação Critical Concrete, focada na intervenção arquitectónica sobre o espaço urbano numa perspectiva social, a Espaços será, em breve, a nova inquilina do quarto andar.

“Foi muito importante porque precisávamos de um espaço para nos candidatarmos a um apoio e não tínhamos capacidade financeira para arrendar. Se tudo correr bem, esse projecto vai permitir dar trabalho remunerado durante seis meses a três jovens desempregados”, conta Liliana Lopes, docente na Escola Superior de Educação do Porto e voluntária neste projecto.

Parceria improvável

Esta parceria “improvável” entre as associações acabou por se alargar ao Habitar, do qual as associações se tornaram parceiras. E isso significa que está cumprido um dos objectivos do programa: “Queremos criar redes, não simplesmente parcerias no papel.” Com uma candidatura a um apoio europeu, o Actors for Urban Change, vão receber no Verão deste ano estudantes do mundo inteiro para reabilitar um edifício do Bonfim. “No futuro queremos implementar esta estratégia no território não com estudantes mas com operários, com mão-de-obra local.”

No gabinete de atendimento do Programa Habitar, Aitor quer fazer os proprietários perceberem que, além das opções óbvias — deixar a casa ao abandono ou vendê-la —, há uma outra : “Encontrar financiamento público, ter uma equipa do Habitar a coordenar e, se for necessário, encontrar um inquilino através da junta.” 

O momento para implementar a ideia, diz o presidente independente eleito na lista de Rui Moreira, não podia ser melhor. Em 2015, foram adicionadas à freguesia duas novas zonas de requalificação urbana e, na área destinada à vizinha Campanhã, há ainda uma parte significativa incluída no território do Bonfim, freguesia criada por um decreto de Costa Cabral a 11 de Dezembro de 1841. “Estar nessa zona de requalificação traz vantagens, nomeadamente no IVA, que numa reparação normal é de 23% e nestas áreas é de 6%”, realça.

A junta tem desde 2014 um outro projecto de apoio à reabilitação, “Casa Reparada, Vida Melhorada”, através do qual foram já intervencionadas uma dezena de casas e há “mais duas ou três em curso”. A equação, diz Aitor Varea Oro, é simples e só traz ganhos: “Se há duas mil casas vagas significa que há muitas oportunidades económicas perdidas para os proprietários, para inquilinos que procuram habitação a preço justo e não encontram, e para os próprios trabalhadores da área da construção.” Para o espanhol, haver tantos arquitectos portugueses a emigrar numa cidade com quatro escolas de arquitectura e tanta necessidade de reabilitação é um completo contra-senso. “É um problema enorme e muito abrangente, tem a ver com economia local e uma cidade mais livre.”

O papel do arquitecto

Na rua de São Vítor, está já em vista um segundo espaço a ser intervencionado pelo Habitar — agora em “stand-by”, à espera de ver resolvido um conflito entre vizinhos. Convencer a proprietária foi, neste caso, “um trabalho quase psicológico”, conta Aitor: “Foi dizer-lhe: ‘não se preocupe porque tem uma oportunidade, não um problema.” A ideia para esta casa é fazer uma reabilitação através do Reabilitar para Arrendar, do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), um programa de arrendamento em regime de renda condicionada. Com a ajuda do Habitar, a proprietária pode apresentar um orçamento para a recuperação e, com ele, ficar a saber quanto tem de pagar mensalmente pelo empréstimo, até um máximo de 15 anos. Se a prestação for superior àquilo que o proprietário cobrar por renda, o empréstimo não é concedido; se for inferior, é. “Isto significa que desde o primeiro dia, o senhorio tem alguém a habitar a casa e a pagar o empréstimo e o inquilino tem uma habitação a preço justo”, conta. 

É apenas neste cenário que a arquitectura faz sentido para Aitor, vista não apenas como uma definição física do espaço, mas sobretudo como um “serviço básico, como a educação e a saúde”. Por isso, gosta de imaginar um futuro onde haja uma espécie de “arquitecto de família” para as populações. Porque o direito à habitação, diz, “não é um problema das pessoas com poucos recursos”. “Diz respeito a todos nós e tem um impacto muito grande no funcionamento das cidades.”

Aitor já não tem dúvida sobre o papel de um arquitecto na sociedade. E acredita que a arquitectura “está a evoluir” — como comprova o prémio Pritzker deste ano, o chileno Alejandro Aravena, conhecido pelos seus revolucionários projectos de habitação social. No processo SAAL, Aitor descobriu dois arquitectos que ganharam graças de “heróis” na lista dele. “O Nuno Teotónio Pereira e o Nuno Portas propunham uma coisa: organizar a procura em vez da oferta. Organizar as populações”, diz. É isso que o Habitar sonha fazer — agora no Bonfim, no futuro noutras freguesias da cidade. “Temos ferramentas para que isso aconteça agora, não precisamos de outro 25 de Abril.”

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