Ai, as minhas cerejas!

Assim que chega a Primavera, muitos portugueses começam a pensar na praia, nas férias, nas cervejas na esplanada, nos petiscos estivais, nas viagens, etc. Eu também. Antes disso, porém, há outra imagem idílica que anima o meu horizonte: o supremo prazer de subir a uma cerejeira e tranquilamente encher a barriga com este fruto que tem tanto de pequeno como de bom.

Acreditem que troco, sem pensar duas vezes, uma tarde na esplanada por um final de tarde em cima da cerejeira. Os ramos não são o assento mais confortável do mundo, mas a paz do campo, a vista do alto da árvore e o sabor da cereja compensam largamente a falta de conforto.

É claro que podemos sempre comprar cerejas no supermercado ou na frutaria. Mas não é a mesma coisa — a começar pelo preço, embora se perceba que colher cerejas dá muito trabalho e até é daqueles casos em que se justifica ser um produto caro.

O problema para quem, como eu, gosta de comer cerejas directamente das árvores são os pássaros. Exércitos de pegas-rabudas, melros, pardais, estorninhos e outras aves adoráveis-excepto-quando-comem-as-minhas-cerejas são concorrência desleal. Diz quem sabe que antigamente não era assim, porque havia mais gente e mais cerejeiras.

Agora, a única maneira é travar uma “guerra” (sem chumbo, claro) com as famintas aves. O que tem o seu quê de divertido. E vale quase tudo: espantalhos feitos com baldes velhos, paus de vassoura e trapos; CD’s e DVD’s pendurados nos ramos para reflectir a luz do sol; moinhos de vento barulhentos para os assustar; e — a solução mais eficaz e trabalhosa — tapar toda a cerejeira com uma rede de pesca. Quando estamos por perto de casa, também vale a pena bater palmas ou até disparar a espingarda de chumbo (descarregada) para espantar os bandos que não largam as cerejeiras.

Este problema dos pássaros e das cerejas pode não interessar a muita gente — eu sei que os supostos gémeos do Ronaldo são mais cativantes — mas é apenas mais um sinal de como Portugal está a mudar. Quem vai hoje ao Interior do país, certamente notará como há muitas casas fechadas e outras tantas a cair. Como escolas primárias são hoje fantasmas com vidros partidos e portas despedaçadas. Como é difícil encontrar crianças no meio das poucas cabeças brancas que ainda habitam nas aldeias. Como muitos campos estão hoje abandonados.

Não tenho nenhuma solução milagrosa — nem este é o espaço para isso — mas é notório como se tem feito pouco para evitar a desertificação do Interior. Tudo nos chama para as grandes cidades (com Lisboa à cabeça) e claro que nós, o que não resistimos à tentação, também somos culpados.

Um dia, nós (ou os nossos filhos e netos) vamos pagar a factura. Nem que seja quando eles — que agora aprendem a comer cerejas e a cuspir caroços — perceberem que as Lisboas deste país acabaram com as cerejas. Os pássaros e o vazio levaram-nas todas…

P.S. Esta crónica foi escrita antes da tragédia de Pedrógão Grande e imediatamente as cerejas (ou a falta delas) perderam importância. Mas bem vistas as coisas, isto anda tudo ligado. O Interior onde as cerejas são deixadas à sua sorte é o mesmo onde populações envelhecidas ficam à mercê do desordenamento do nosso território e dos caprichos do “monstro”, como lhe chamou o Adriano Miranda. Só espero agora que todos os que mandam (do Governo aos deputados, passando pelos autarcas) tenham a serenidade e a coragem de trocar a politiquice pela grande política. Ou seja, que se concentrem no que realmente é preciso para que tragédias destas não se repitam em vez de se preocuparem em manter ou chegar ao poder. Ainda que sejam poucas, eu ofereço as cerejas...

Esta Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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