Adeus, Alexandra, e até já

Ficámos amigos e saímos juntos do Iraque pela longa estrada que liga Bagdad a Amã. Na Jordânia, como prenda de despedida após várias semanas em reportagem, oferecemos a nós próprios uma viagem a Petra

Conheci a Alexandra Lucas Coelho em 2003, numa Bagdad estranhamente pacificada, onde os soldados americanos circulavam pelas ruas sem colete à prova de balas. Hoje parece impossível acreditar que esse tempo existiu, mas existiu mesmo, durante algumas semanas da Primavera de 2003. Bagdad tinha caído em Abril, Saddam Hussein estava em parte incerta, e Paul Bremer governava provisoriamente o Iraque. Foi a última guerra em que os jornais portugueses se permitiram gastar uma quantidade absurda de dinheiro para manter repórteres em permanência no terreno. Eu trabalhava no Diário de Notícias e fui substituir o então director-adjunto António Ribeiro Ferreira, cujos textos pró-americanos se tornaram famosos e indignavam profundamente a esquerda na recém-criada blogosfera. A crónica onde Ribeiro Ferreira descrevia o seu magnífico mergulho num rio Tigre lamacento e poluído ainda hoje faz parte da memória colectiva dessa época.

Quando cheguei a Bagdad, Bremer tinha acabado de assinar a ordem que a pouco e pouco lançaria de novo o país no caos: a dissolução do partido Ba’ath e o impedimento de todos os seus membros de fazerem parte da futura administração iraquiana. Tendo em conta que era impossível, durante o regime de Saddam, ser funcionário público sem estar filiado no Ba’ath, aquela ordem absurda significou não só a destruição da vida de centenas de milhares de pessoas e respectivas famílias, boa parte das quais sem qualquer simpatia pelo ditador, como a implosão do pouco que restava da estrutura estatal iraquiana, em nome de um sonho de nation building que deu no que deu. Contudo, nas três semanas que trabalhei no Iraque, a guerrilha sunita ainda não tinha acordado e aquilo a que se assistia era ao intenso borbulhar de uma cidade libertada após décadas de repressão, com as salas de cinema a passarem filmes eróticos dos anos 70, como no Portugal do pós-25 de Abril, e os tectos das casas a encherem-se de antenas parabólicas.

Os jornalistas portugueses estavam instalados no Hotel Babylon, onde se comia frango assado ao almoço e frango assado ao jantar. Os frangos pareciam ter sido os únicos animais a sobreviver à guerra, para conquistarem o triste exclusivo da gastronomia local. É possível que tenha sido à volta de um frango que comecei a falar com a Alexandra, no bar de um hotel onde faltava tudo, excepto grandes estrelas da reportagem mundial. Eu estava completamente deslocado, mas para a Alexandra aquele era o seu habitat natural. Escrevia exclusivos diários sobre covas comuns recém-descobertas e ia vestida de burqa para o meio de manifestações xiitas, enquanto eu andava pelo Iraque a conversar com pintores cuja vida era desenhar Saddam.

Embora escrevêssemos para jornais concorrentes, a Alexandra ajudou-me, aconselhou-me, apoiou-me. Ficámos amigos e saímos juntos do Iraque pela longa estrada que liga Bagdad a Amã. Na Jordânia, como prenda de despedida após várias semanas em reportagem, oferecemos a nós próprios uma viagem a Petra. Foi inesquecível. Os turistas tinham fugido todos por causa da guerra, e aquele espantoso lugar era só nosso. É das memórias que justificam uma vida, e nela está a Alexandra. O mundo de 2003 não é o de 2017. O PÚBLICO já não é o mesmo. O jornalismo não é o mesmo. Suponho que nem ela, nem eu, sejamos os mesmos. Mas aquelas três semanas são preciosas para mim, e sem a Alexandra não teriam sido a mesma coisa. Ontem ela disse adeus ao PÚBLICO. Eu devia-lhe há muito este obrigado.

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