Abandono, palavra e crime

A notícia é recente e tem o seu quê de extraordinário. Num conjunto de 6 ilhas da Libéria estão 66 chimpanzés incapazes de verdadeiramente o serem, ou seja, de buscar alimentação por si próprios e de sobreviverem sem ajuda humana. Na verdade, não são chimpanzés como os outros. A dada altura da sua vida, foram capturados ou arregimentados para servirem de cobaias num laboratório norte-americano do Centro de Sangue de Nova Iorque (NYBC). Submeteram-nos a vários testes virais, entre eles o da hepatite B. Sobreviveram. Mas o laboratório interrompeu, há dez anos, tais testes e enviou as cobaias para a “reforma”. Por “dever moral”, disseram, continuou a alimentá-los, mas longe. Na Libéria. Esse país fundado no século XIX por ex-escravos de que a América se quis livrar por temer as suas “más influências” na sociedade.

Os macacos, no entanto, não traziam qualquer estigma. Apenas o da inutilidade. Habituados que estavam a ser alimentados, assim continuaram. Diariamente, um barco carregado de fruta (bananas, papaias, ananases e mangas) visita as ilhas e eles vão recebê-lo, doidos de alegria. Um alerta os outros e vêm todos, ansiosos pela sua ração. Não são macacos, já. São um híbrido domesticado, habituado às rotinas humanas que lhes criaram.

Mas porque é que isto foi notícia? Porque o laboratório pôs o “dever moral” de parte e deixou de financiar a alimentação das suas antigas cobaias. Diz que não é dono destes macacos nem nunca foi. Que a Libéria os alimente, se quiser. Só que a Libéria tem outras prioridades, dramas locais, e ainda recupera da crise do ébola. Por isso paciência, macacos! Acabaram-se os barcos com bananas e papaias de graça. Haverá alguém que lhe explique isto? “Eles não são assim tão diferentes dos homens”, afiança o dedicado tratador que diariamente os visita. É verdade. E talvez por isso mesmo não se salvem.

A palavra abandono é antiga, em qualquer língua ou pátria. Por cá já foi fado (belíssimo fado, poema de David-Mourão Ferreira musicado por Oulman para Amália e que Camané recentemente gravou homenageando-a) e é uma das primeiras palavras de qualquer dicionário. Quer dizer desprezo, desdém, desamparo total; ou renúncia, desistência. O fotógrafo Sebastião Salgado (Génesis, a sua mais recente exposição, continua na Cordoaria, em Lisboa, até 2 de Agosto, não a percam), antes de fotografar a Terra como se a visse nos primórdios do Homem, andou pelo mundo a ver aquilo de que o ser humano era capaz. Viu ritos ancestrais e beleza, mas também ódio e morte. Esteve no Ruanda nos anos terríveis da carnificina entre hutus e tutsis, esteve na ex-Jugoslávia nos anos do maior flagelo europeu após as duas guerras mundiais. Viu refugiados aos milhares, milhões, em vagas sem destino, escorraçados como animais, deixados morrer como não-existências. Viu-lhes nos olhos velados e inexpressivos a antecipação certeira da morte. E viu cadáveres empilhados, atirados por buldózeres às centenas para valas comuns e cobertos de terra. Numa estrada africana mediu “150 quilómetros de mortos”. Resultado de uma macabra contabilidade diária de 12 a 25 mil mortos, de fome ou cólera. Ou assassinados a tiro e à catanada.

“Somos um animal muito feroz, somos um animal terrível, nós, os humanos”, concluiu o fotógrafo. E di-lo perante a câmara de Wim Wenders, no filme O Sal da Terra (que acompanha, em paralelo, em DVD, esta sua recente exposição). “Seja aqui na Europa, seja em África, seja na América Latina, seja onde for. Somos realmente de uma violência extrema. A nossa história é uma história de guerras. É uma história interminável, uma história de repressão, uma história de loucura.” Quando saiu do Ruanda, e antes de fotografar a série Génesis (como redenção dos olhos e sobretudo do espírito), Sebastião Salgado vinha como se estivesse doente, mas doente da alma: “Retirei-me daqui sem acreditar fosse no que fosse. Deixei de acreditar que houvesse salvação para a espécie humana. É impossível sobreviver a tal coisa. Nem mereceríamos viver. Ninguém merecia viver.” Ouviram, macacos? Bem podem esperar nas vossas ilhas pela gratidão humana. A história, decididamente, não vos favorece.

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