A vida entre parêntesis

Não convencem que o facto de 70% das mulheres portuguesas com filhos até dois anos de idade trabalharem a tempo inteiro é um sinal de progresso e de emancipação feminina.

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Paula Abreu

O Brazelton, que até tenho marcado com post-it amarelos lá em casa, há-de ter muitos conselhos sobre isso, mas não vislumbrei nos seus calhamaços um capítulo sobre o que fazer quando se sai do trabalho com a sensação de que é demasiado cedo e se aguenta o soslaio de quem ignora que o trabalho é contratualmente regulado até na hora de saída. Enfrenta-se o trânsito para chegar à escola com a sensação de que é demasiado tarde, porque a mais nova ainda está longe dos dois anos e vai na nona hora de permanência da escola. As mãos que as cuidam fazem-no bem, mas não são as minhas. Dali, engole-se nova exasperação do pára-arranca automóvel para ir buscar a mais velha à actividade do dia. E, sim, há pais que encharcam os filhos de actividades extracurriculares porque as aulas do 1º ciclo do básico acabam às 16h mas o trabalho dos pais não, livrem-se de me vir com discursos.

(e, apesar do aviso, eis a admoestação do Mário Cordeiro quando lembra que as crianças precisam de brincar livremente duas horas, todos os dias, e que as que se desdobram em actividades extracurriculares depois da escola crescem infelizes e com pouca amizade pelo conhecimento – está tudo no Manual de Instruções para uma Criança Feliz, vão conferir à Pais&Filhos)

Chegadas a casa, a sopa da mais nova salta do frigorífico para o micro-ondas, enquanto a mais velha se aferroa ao tablet dos pais e pergunta com o jeito dengoso de uma Jennifer Jason Leigh:

- Mãe posso instalar um jogo?

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Paula Abreu

Entretanto, a sopa que a mais nova demorou mais de meia hora a engolir sai em jacto para o chão.

(Vou dizer que não. As crianças precisam de testar os limites do corpo e brincar na natureza, onde possam correr riscos. Foi o ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, Luis Januário, que o lembrou, num libelo contra as kidzanias deste mundo, o que ele haverá de ter gostado do anúncio do Skip que nos matraqueia agora no Youtube para, sob o lema “Libertem as crianças”, nos lembrar que até os reclusos norte-americanos têm direito a duas horas ao ar livre por dia)    

- Podes, filha.

E toca a sacar da esfregona para limpar o chão, onde a mais nova há-de estar daqui a pouco a exercitar os primeiros passos e a sua capacidade de fazer dos dedos pinças para apanhar as migalhas mais microscópicas que há-de levar à boca.

O jantar do resto da família faz-se já em ritmo de corrida, ainda há banhos para dar e a história para adormecer da mais velha é lida em surdina para que a mais nova não acorde. E eis que ela pergunta:

- O coelhinho está zangado?

- Não, até está contente. Porquê?

- Porque tu estás ler como se ele estivesse zangado.

Chega o beijo do pai e o relógio electrónico pisca a vermelho largos minutos depois das 22h (atenção ao alerta da American Sleep Association que recomenda entre nove a 11 horas de sono para as crianças entre os seis e os 13 anos, qualquer pesquisa no Google confirma isto). É tardíssimo, portanto, e o pedido:

- Mãe, fica aqui mais um bocadinho comigo…

Leva com um rotundo não, como resposta.

Na sala, o computador aberto sobre a mesa lembra a necessidade de fazer a transcrição da entrevista para o dia seguinte ser mais fácil, o calhamaço da Lucia Berlin já ameaça alergias da poeira acumulada,

(vá lá que a Ferrante já ninguém me tira, ide às Crónicas do Mal de Amor (Relógio D’Água, 2014) para confirmar as dificuldades em conservar uma identidade própria em coesão com a responsabilidade de criar os filhos, apesar da ferocidade com que os amamos)

mas a vontade resvala para o sofá com a promessa de um anestesiante episódio de Chicago PD  ou de um não tanto anestesiante Masters of Sex, à volta das peripécias de William Masters e Virginia Johnson (recua aos anos 60, mas continua actualíssimo, sobretudo quanto às dificuldades de as mulheres normais se afirmarem fora da esfera doméstica e da sua capacidade reprodutora) .

Venham-me agora falar das mulheres que se sentem prejudicadas no local de trabalho por não terem filhos. Sim, o debate está camuflado mas ganha corpo aqui e ali, apesar de a procissão discursiva sobre a conciliação família-trabalho em Portugal ainda ir no adro. E não, não me conseguiram convencer ainda que o facto de 70% das mulheres portuguesas com filhos até dois anos de idade trabalharem a tempo inteiro (muito acima, portanto dos 53% dos países da OCDE, é consultar o último Society at a Glance) é um sinal de progresso e de emancipação feminina. 

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