A terceira metade da história

Nos anos 60 do século passado, o meu pai foi taxista. Na verdade, o meu pai trabalhava num banco e não era proprietário de carro nem de alvará. Ia para o táxi depois de sair do emprego. A primeira corrida servia para ajudar a pagar contas da família; a partir daí, as restantes serviam para pagar ao dono do carro.

Esta estima filial não me serve, como é evidente, para resumir  todos os taxistas; tal como também me pode servir as vezes em que fui mal-tratado num táxi. Recuso-me a aceitar esta ideia dos últimos dias de que é preciso estar a favor ou contra o táxi como quem é favorável ou contrário à inovação. O que o exemplo do meu pai me serve para demonstrar é que ele fazia há cinquenta aquilo que as novas plataformas proclamam com orgulho para hoje: usar de uma economia de biscates para compor o seu rendimento. Não é uma inovação; é uma “envelhação” — o regresso a um sistema desregulado que já existiu (em boa medida, ainda existe: ainda há nos táxis muita diferença entre proprietários de alvarás e motoristas sem carros e grandes distinções de classe dentro da classe).

A diferença, diz-se, está na tecnologia. Mas a tecnologia não é mais inerente aos carros da Uber do que poderia ser aos táxis. A principal tecnologia que os taxistas não dominam não é a do software nem dos telemóveis, mas a da opinião nos tempos das redes sociais e da agenda noticiosa permanente. Aquela que torna declarações vergonhosas de um taxista mais decisivas do que cem opiniões de taxistas ponderados. A que divide imediatamente a sociedade em campos irredutíveis, cada qual com a sua metade da história.

Mas talvez haja uma terceira metade da história. Os taxistas estão na atual linha da frente da extinção profissional, um movimento que vem de trás e que por si só não garante a substituição de profissões antigas, muito menos a possibilidade ajudar à formação e à transição entre profissões. Daqui a uma década ou menos, o mesmo acontecerá aos camionistas. É bom que nos preparemos. O mesmo acontecerá a muitos de nós, e provavelmente também seremos sujeitos ao mesmo severo tribunal dos nossos concidadãos, tornados então consumidores, que nos dispensarão com a mesma impiedade com que agora muitos tratam os taxistas.

A questão é se devemos ser deixados a sós perante a ceifadeira prontos a sermos tragados fieira a fieira ou se, como sociedade, temos alguma obrigação de usar as mudanças no ambiente tecnológico e económico para ajudar a moderar as suas piores consequências e, se possível, melhorar a condição de vida de todos. A chave está, para mim, numa frase dita pelo representante da Cabify à RTP quando perguntado sobre a precariedade nos seus serviços: “Essa não é uma questão que nos caiba a nós”. Pois é, mas cabe-nos a nós fazer com que lhes caiba a eles também.

As empresas como a Uber e Cabify orgulham-se de serem disruptoras. Essa disrupção não lhes pode sair barata a eles e cara a todos nós, o que não significa satisfazer as reivindicações de “contigentação” dos taxistas, mas obrigar as novas empresas a pagar para mitigar os problemas que causam e ajudar a resolver outros problemas que temos. Recolhendo recursos que permitam, por exemplo, aumentar o investimento nos transportes públicos coletivos e na formação e renovação dos taxistas.

Numa sociedade civilizada não há “isso não nos cabe a nós”. Cada um de nós é ao mesmo tempo consumidor e trabalhador; se decide por-se apenas de um lado está a decidir contra outros hoje e contra si mesmo no futuro.

Historiador, fundador do Livre

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