A Sociologia no ensino básico e secundário: um imperativo científico e de cidadania

À justificação de que os conteúdos destas disciplinas poderão ser dados transversalmente, presidiu, para além de uma atitude do PSD-CDS de "fabricar" mentalmente jovens acríticos e despolitizados, a ignorância dos responsáveis de orientação tecnocrática da relevância das Ciências Sociais.

O Governo do PSD-CDS tomou medidas lesivas dos profissionais de ciências sociais com a extinção do Programa Novas Oportunidades para Adultos e com a última revisão da Estrutura Curricular no ensino básico e secundário.

Relativamente ao primeiro ponto, mesmo admitindo que o programa pudesse ser objeto de fiscalização, correção e melhoria, é necessário lembrar e reconhecer o trabalho dedicado e competente de milhares de profissionais, entre os quais sociólogos, na formação e no reconhecimento, na validação e na certificação de competências na educação de adultos que, por falta de recursos económicos ou culturais, não tiveram oportunidade de se qualificar ao tempo da sua adolescência ou juventude. Tudo indica que a introdução do Programa Qualifica pelo actual Governo venha suprir esta enorme lacuna.

No que concerne o segundo ponto, recordo, enquanto ex-presidente da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), o modo displicente e arrogante como o anterior ministro da Educação Nuno Crato, não obstante o pedido expresso de audiência perante o projeto resultante do disposto no DL 94/2011, de 3 de Agosto, não só não se dignou receber a direcção da APS, como nem sequer delegou no chefe de gabinete o pedido da APS. Não obstante as sucessivas posições das diversas direções da APS terem reivindicado um lugar digno dos Estudos Sociais e/ou da Sociologia no ensino básico e secundário, as Ciências Sociais, nomeadamente a Sociologia, continuaram praticamente ausentes no ensino secundário e, com a contra-reforma de Nuno Crato, de modo mais notório. As propostas de Nuno Crato vertidas na referida revisão curricular intercalar, alegadamente no sentido de “simplificação” da estrutura curricular, consubstanciaram-se num corte de 102 milhões de euros, inscrevendo-se no programa de austeridade imposto pela troika e reforçado pelo Governo PSD-CDS no quadro de uma estratégia de redução global de custos em Educação. Este corte, que englobou várias componentes, cifrou-se em cerca de 1500 milhões de euros (1% do PIB) por exigência das metas orçamentais para 2012.

Para além dos efeitos gravosos desta estratégia economicista no campo educativo e, em última instância, para a soberania e o desenvolvimento do país, importa ter presente os danos na formação cívica e sociopolítica causados com a referida revisão da estrutura curricular de 2012, em que as Ciências Sociais são menorizadas ou mesmo menosprezadas. A Sociologia tem sido subalternizada no grupo em que está inserida (7.º grupo, Economia) prioritariamente lecionável por diplomados em Filosofia, Economia ou Direito ou relegada para disciplina opcional e como oferta facultativa, dispensável e/ou dependente de eventual projeto de escola.

A esta limitação acresceu, com Nuno Crato, por um lado, a eliminação da disciplina de Formação Cívica nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no 10.º ano e, por outro, a redução do número de disciplinas de opção anual no final do secundário. Ora, sendo neste conjunto de disciplinas opcionais que se tem enquadrado a oferta da Sociologia, a redução a uma escolha monodisciplinar significou a diminuição do número de turmas ou até o desaparecimento da disciplina em muitas escolas. Tal redução do número de opções não só afectou docentes, como implicou um maior estreitamento do espectro dos saberes, prejudicial aos alunos, tanto mais que estes sentem ainda alguma dificuldade em escolher o curso que pretendem frequentar por desconhecimento dos seus conteúdos e/ou saídas profissionais.

Não obstante ter sido avançado, ao tempo do ministro Júlio Pedrosa, um projecto de portaria que previa a formação de um grupo disciplinar da Sociologia (eventualmente com a Antropologia), este problema tem-se arrastado há décadas e, neste sentido, os governos anteriores tão-pouco se prestaram a resolver esta questão. Porém, não obstante a Sociologia não ter alcançado até hoje no ensino secundário o lugar que deveria ter — é disciplina obrigatória em vários países europeus e na América Latina, nomeadamente no Brasil —, a revisão de Nuno Crato teve a particularidade não só de ignorar praticamente a Sociologia, como representar uma afronta, por omissão, à formação cívico-política dos jovens. Mais, contrariou reformas ou revisões anteriores, inclusive de ministros da área político-partidária do seu governo, como a proposta em 2004 por David Justino, ex-ministro do PSD, que previa como obrigatórias, além da Área Projecto, disciplinas ou domínios de formação sociocultural em áreas consideradas fundamentais como cidadania e mundo actual, cidadania e sociedade, a par e com mesmas horas que formações científico-naturais ou técnicas.

À justificação de que os conteúdos desta e de qualquer de uma destas disciplinas poderão ser dados transversalmente, presidiu, para além de uma atitude política do PSD-CDS no sentido de “fabricar” mentalmente jovens acríticos e despolitizados, a ignorância por parte de responsáveis de orientação tecnocrática em torno da relevância científica e social das Ciências Sociais, designadamente da Sociologia. É este posicionamento “cientificista” e tecnocrático que, não debatendo a sério as áreas disciplinares com os respectivos profissionais e suas associações, se arroga o direito, em termos epistemológicos, de saber quais as disciplinas fundamentais, classificando as demais como secundárias ou dispensáveis, tais como a Sociologia.

A alegada cultura de exigência e a glorificação imperativa da meritocracia e da excelência, além de promoverem a diferenciação elitista de vias e trajectos ora para prossecução de estudos, ora para saídas profissionalizantes, têm subjacente um posicionamento positivista, segundo o qual a formação cívico-política, não sendo da esfera científica, seria irrelevante, porque retórica, ideológica ou “utópica” e, como tal, cientificamente inútil na formação dos jovens. Porém, este propósito “cientificista” pela excelência e em torno do que é fundamental no ensino não deixa de ser traduzido na “sociedade do conhecimento”, o último achado ideológico, considerado preferível ao das competências, para legitimar a política educativa do último Governo PSD-CDS. O ministério de Nuno Crato, para além do argumento da falta de meios financeiros, veiculava, numa perspetiva neoliberal, embora não explicitamente assumida, o princípio da liberdade de cada escola na distribuição da carga horária ao longo dos ciclos e anos de escolaridade.

Em boa hora o atual Ministério da Educação, considerando a necessidade de profunda revisão dos programas e conteúdos das áreas disciplinares, coloca em debate público esta matéria e em melhor hora a direção da Associação Portuguesa de Sociologia coloca na ordem do dia a reivindicação legítima da docência da Sociologia como disciplina obrigatória no ensino secundário. Pelo menos, perante a situação atual de menosprezo das ciências sociais no ensino básico e secundário, seria curial a introdução de uma disciplina de Estudos Sociais no básico e de uma outra no secundário, que, eventualmente articulada com a Filosofia, fosse construída em torno de tópicos como sociedade, cultura e política, a qual, para além de filósofos, possa ser lecionada por sociólogos, antropólogos e politólogos ou cientistas políticos.

Tendo em vista uma formação integral dos alunos, esta proposta reverterá a benefício de cidadãos/ãs mais qualificados e participativos e em prol de uma sociedade menos desigual, mais desenvolvida e culturalmente esclarecida.

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