A saúde dos portugueses e o Syriza

Numa carta em que compara, entre outras situações, a extensão de notícias, reportagens e artigos de opinião dedicados às eleições na Grécia em confronto com a «escasso» acompanhamento à crise instalada nas urgências dos nossos hospitais públicos, um leitor lança-me esta provocação: «No tempo da censura, só aparecia o que era permitido, agora é o que a linha redatorial permite, é plural e independente porque só se contratam ou permitem que escrevam os jornalistas que escrevem o que a linha redatorial permite, o Sr. provedor é capaz de desmentir isto, será muito diferente do tempo da democracia?»

A desafiante interrogação deste leitor insere-se em tantos outros comentários que recebo de outros leitores a manifestar discordância com a orientação seguida pelo PÚBLICO, os ditos «critérios editoriais», face aos diferentes acontecimentos e situações noticiados comentados. Perante uma sociedade, felizmente, cada vez mais plural, diversificada nos quadros de referência e modos de encarar a vida, o país e o mundo, e o que neles vai acontecendo, não admira que sobre a interpretação dos actos e decisões de um jornal que, não obstante também se declarar plural, tal suceda. E também, aqui, repito e relevo, o felizmente atrás usado. Aliás, o PÚBLICO instituiu um provedor dos leitores na consciência exacta de que «nenhuma Redacção dispõe de massa de conhecimentos e da capacidade crítica que os leitores de um jornal representam» e, por isso mesmo, atribui ao provedor a faculdade de ser «uma instância crítica do seu trabalho…».

Obviamente que o reconhecimento por parte de um jornal que é feito para um público plural não implica que esse jornal renuncie aos princípios e critérios de orientação que foram e estão preconizados no seu projecto editorial. As discordâncias sentidas e criticadas são em si mesmas a confirmação da heterogeneidade opinativa de um público que lê um jornal e da redacção que o faz. O dilema da resposta em que o leitor me quer colocar refere-se a duas situações concretas: a «cobertura», porventura excessiva, dada à vitória do Syriza nas eleições gregas e à fraca atenção dada à mais recente crise nas urgências.

Eu compreendo o «desabafo», na expressão do próprio leitor. A saúde é incontestavelmente, e bem, um dos valores-benefício que os cidadãos mais estimam e querem ver defendido. Notícias como aquelas que surgiram no auge desta crise, da lastimável situação de nossos concidadãos nas urgências, horas e horas a fio, à espera de atendimento, e nalguns casos, sujeitos a morrer sem esse atendimento alarmam a consciência pública. São situações muito próximas de cada um de nós e que nos atormentam por elas e pelo factor de, amanhã, sermos nós no lugar e situação destes cidadãos. A proximidade dos acontecimentos é sempre um critério forte da leitura das notícias. Mas este desabafo levou-me a verificar com atenção as notícias e reportagens do PÚBLICO sobre este assunto. E verifiquei que, embora sem grande ênfase (passe o francesismo) e sem alarmismo nas mortes verificadas nessa crítica situação de espera, quase todos os dias, o PÚBLICO, principalmente em textos das jornalistas Alexandra Campos e Romana Borja-Santos, incluiu o tema nas suas páginas, com interpelações as gestões desses hospitais, aos utentes e à própria tutela. Muito menos me parece, como se inscreve no teor de outra queixa que o PÚBLICO esteja a «proteger» o ministro, Paulo Macedo. Evidentemente que o Serviço Nacional de Saúde, um dos diademas marcantes do Portugal contemporâneo tem de ser «causa» de análise profunda, muito especialmente, pelos danos que este sufoco imposto pela austeridade lhe acarretou.

Relativamente à vitória do Syriza na Grécia foi grande o destaque que o PÚBLICO dedicou e tem dedicado nas suas colunas. O PUBLICO, de facto, por Estatuto Editorial, e eu, sem rodeios, diria, por conveniência estratégica dos condicionamentos financeiros, dá grande atenção aos acontecimentos internacionais. Por Estatuto, é uma condição que deriva do carácter específico atribuível a jornais ditos de referência. Porém, no caso concreto das eleições gregas, este era um acontecimento de enorme expectativa e repercussão para toda a Europa. E, portanto,  para Portugal. Neste impasse em que jaz o projecto Europa, nesta crise profunda que ameaça o presente e o futuro de uma Comunidade Europeia como foi concebida, as eleições na Grécia, seja qual for o seguimento do desfecho eleitoral registado, funcionou como campainha de alarme. Para uns concidadãos europeus sinal de chamada à necessidade de uma mudança política na orientação de construção dessa Europa outrora desenhada. Para outros, como sinal de «traição» e atentado à sua sustentabilidade. Não admira que, numa lógica do discurso hegemonicamente dominante, o alarme seja, sobretudo, temeroso, e visto como desestabilizador da Europa actualmente «convencionada». Não deixa de ser estranho que sejam poucos os comentadores a dar atenção a um sinal, porventura, de factor de revolta / revolução, ao estilo grego, e sejam muitos a expectar o desaire, mais uma vez, o desengano das ilusões construídas pela liderança «utópica» de Alexis Tsipras. Quiçá, as facturas de um projecto Europa e de Euro construído sempre com a fuga a um indispensável instrumento de democracia, o referendo de cada país, cada povo, comecem a chegar.

Mas, meu caro Leitor, quanto à interrogação que me colocou, não obstante todos os erros, omissões e desvios, cometidos pelos media actuais, e pelo PÚBLICO como tal, eu não tenho dúvidas na resposta: não há qualquer semelhança. Ainda estamos a pagar efeitos da censura. Na política, na vida pública, na cidadania, e no modo como encaramos o que acontece à nossa volta.

 

 

CORREIO LEITORES/PROVEDOR

 

Alcorão / Corão

 

Diz um leitor: «Bem se sabe que o Público optou há muito por excluir os revisores dos seus quadros de pessoal com as consequências que se sabe para a qualidade ortográfica de muitos escritos. Mas o que justificará que o nome do livro sagrado dos muçulmanos se escreva zelosamente segundo normas estrangeiras (Corão) e não segundo a correcta versão portuguesa (Alcorão)? Por todos, veja-se http://www.publico.pt/ciencia/noticia/dizer-que-estes-fanaticos-nada-tem-a-ver-com-o-islao-e-o-cumulo-do-politicamente-correcto-mas-e-contraproducente-1683399.

Um bom modo de identificar muitas palavras portuguesas com origem árabe é através do prefixo "al". Originariamente este era o artigo definido árabe, mas na História do idioma em que no Público se publicam todas as peças este artigo foi aglutinado às novas palavras portuguesas. Se de modo impensado (e inculto) optam por escrever Corão em vez do correcto Alcorão, em coerência zelosa não deviam passar também a escrever "salada de face", a "ponte que liga Lisboa a Mada", o "presidente da câmara municipal de Cochete", a "marcha popular do bairro de Fama", a "cerveja sem Cool", "o estabelecimento prisional de Coentre", as "minas de Justrel" e por aí fora?»

 

Comentário do provedor: Não me parece expressão de acto impensado ou «inculto». Consultei o «alfabeto» do Livro de Estilo do PÚBLICO e, aí, os dois termos são referidos: Corão - «Há quem considere esta grafia desnecessariamente ultracorrigida. Refira-se, no entanto, que há um autor de um dicionário, professor de Civilização Árabe e Islâmica na Universidade inglesa de Exeter, que cita a palavra árabe original sem o artigo (Qur’an e não al-Qur’an). Cf. Dicionário Islâmico, Religiões, pp. 259.

 

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