A ministra demite-se. E os outros?

Anda no ar a sensação de que a pressão dos acontecimentos nos está a levar para a procura de alvos selectivos. Os alvos óbvios, mais fáceis de atingir.

Às 21h47 do dia da tragédia de Pedrógão Grande, um homem de 75 anos com problemas respiratórios ligou para o 112 a pedir socorro. Estava sozinho. A sua casa estava a arder. A sua mensagem de desespero chegou ao 112. Mas, daí, não seguiu para o posto de comando operacional da Protecção Civil. Histórias como esta, comprovadas nos registos da “caixa negra da Protecção Civil”, arrepiam, geram um incontrolável sentimento de revolta e tornam obrigatória a discussão sobre a responsabilidade do Estado no horror que se passou. Se o chefe da Protecção Civil e a ministra da Administração Interna desconheciam que essa golpada que nos envergonha chamada SIRESP não funcionava ou funcionava mal (o que os seus responsáveis negam), deviam saber; se sabiam ou, remotamente, suspeitavam, tinham o dever de reparar o que houvesse a reparar. O “inquérito rigoroso” que Constança Urbano de Sousa mandou fazer devia ter sido feito antes da tragédia.  

A história inaceitável do homem de Sarzedas do Vasco é bastante para acabar de vez com a ideia tolerante de que a ministra e os responsáveis operacionais da Protecção Civil fizeram tudo o que deviam. Como ela já prometeu, saberá “tirar as devidas ilações”. Mas anda no ar a sensação de que a pressão dos acontecimentos nos está a levar para a procura de alvos selectivos. Os alvos óbvios, mais fáceis de atingir. Passado pouco mais de uma semana sobre a tragédia, deixámos que o debate público se fechasse sobre a procura de culpados políticos, permitimos que se instalasse um mesquinho debate partidário e passámos uma esponja sobre as causas profundas do que aconteceu. Haver culpados no Governo e pedir a sua condenação tem o dom da aspirina, que alivia a consciência com a sensação de que se fez justiça. Mas não resolve o problema de fundo – o estado lastimável da floresta. Estamos a repetir os erros de sempre.

Os incidentes com drones nas últimas semanas devem-nos fazer pensar sobre Pedrógão. Apesar dos avisos, apesar do absurdo, apesar do perigo, apesar da irritação, não tivemos notícia de que o Governo, a GNR, a Polícia Judiciária, o Ministério Público, a Câmara de Lisboa ou a Força Aérea (seja quem for) se tenham mexido para acabar com tão indigna irresponsabilidade. Se um dia houver um incidente, lá vamos ver meio mundo da política, jornalistas, comentadores, bombeiros, polícias ou pilotos a pedir o que hoje se pede para tornar menos cruel o desastre de Pedrógão Grande: culpas, culpados, julgamentos e punições. É sempre mais fácil apontar um dedo a um Governo por um erro com o SIRESP do que culpá-lo por não ter feito tudo o que era possível para o evitar – como é o caso da protecção da floresta. Máquinas a roçar o mato no inverno não geram audiências nem dão votos.

Há nesta aversão ao trabalho de casa, ao estudo e à diligência uma certa forma de ser português. Tornamo-nos sanguíneos, exigentes, solidários e sensíveis quando as bolhas rebentam, mas desenvolvemos uma extraordinária forma de coexistência pacífica com o ar que as vai formando. Havendo uma ministra para crucificar (justamente), ou uma espécie da floresta para odiar (o eucalipto), o caso está encerrado. Lá virá o Bloco e o PCP e o PS a proferir sentenças se estiverem na oposição ou a tergiversar se estiverem no poder. Lá virá o CDS com perguntas que escondem as bolas e setinhas do seu símbolo na argumentação, lá nos arriscamos a ver Pedro Passos Coelho a incinerar-se politicamente com a boataria do suicídio usada num abjecto móbil de combate ao Governo. Como escreveu Ribeiro e Castro, “quem era Brutus passa a César, quem era César faz de Brutus”. Vira o disco e toca o mesmo.

Para sermos justos, devíamos alargar a lista dos que deviam pagar por essa mancha negra da nossa consciência colectiva chamada Pedrógão Grande. Iriamos precisar de muito papel. E muita coragem. Não há muita gente com a fibra e a honorabilidade do ex-secretário de Estado das Florestas, Francisco Gomes da Silva, que num artigo no PÚBLICO admitiu “não ter tido a força, o engenho e a arte para fazer melhor quando tive essa oportunidade”. Teríamos de meter no rol dos responsáveis todos os ministros da Agricultura e todos secretários de Estado que, desde 1996, foram negligentes ou relapsos no regulamentação e cumprimento de uma lei de bases para a Floresta que o Parlamento aprovou por maioria. Seria obrigatório incluir na lista Pedro Passos Coelho que acabou com a Direcção Geral das Florestas e António Costa que, quando foi ministro da Administração Interna, trocou a prevenção pelo combate aos fogos. Caberiam lá ainda os ministros e banqueiros responsáveis por essa miserável patranha chamada SIRESP. Os empresários negligentes e todos os proprietários absentistas. E, claro, todos os autarcas que descuraram a limpeza das matas junto às estradas e às aldeias.

Podíamos por aí, mas sabemos que não vale a pena. O estado de degradação a que deixámos chegar a floresta não se explica apenas com o dolo dos políticos ou a negligência de proprietários. Resulta de um alheamento colectivo. Se o governo é a emanação da soberania popular, e se os nossos governos sempre preferiram o espectáculo dos meios aéreos à modorra das roçadoras do mato, então todos temos uma parte da culpa. Se, em vez de exigirmos que o Governo adopte um plano urgente de limpeza das matas para colar às reformas que darão frutos no futuro, nos interessarmos apenas nas falhas do sistema, estaremos apenas a focar-nos na caça às bruxas e a incentivar a hipocrisia política. Ainda que seja politicamente incorrecto assumi-lo, nesta história não há só um, ou dois, ou dez culpados definidos: há também uma culpa diluída, transversal, manhosa e velha que nos leva a tolerar a falta de coragem dos políticos ou a ser condescendentes com os nossos vizinhos ou autarcas que não limpam as suas matas.  

O pior é que, sob a protecção do actual clima punitivo e justiceiro, o Governo terá espaço para assobiar para o lado. Vamos ter inquéritos inconclusivos, talvez, responsabilidades diluídas, provas frágeis e suspeitas mútuas porque, basta escutar as testemunhas, o que aconteceu foi um horror tão potenciado pelo estado lastimável da floresta (e pelo clima) como por eventuais erros humanos. Teremos talvez ministros demitidos, mas não vamos ter aquilo que a origem do mal, a degradação da floresta, precisa: medidas de excepção, limpeza, infraestruturas, mobilização e envolvimento da excelente ciência que há em Portugal sobre os fogos e a floresta. Se o Verão for muito quente e seco como o do ano passado, haverá mais pedrógãos à espera, mais castigos e mais fumaça política. O habitual fado de quem prefere o espectáculo em detrimento do trabalho de sapa. 

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