“A máquina do Estado não pode ser tão fria”

José de Faria Costa, provedor de Justiça, lamenta que em mais de duas décadas tenha mudado muito pouco no interior das cadeias, quando se avançou tanto na defesa dos direitos humanos.

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José de Faria Costa: "Temos de ultrapassar a cultura do funcionário para entrarmos numa cultura do servidor do Estado — servindo o cidadão" DR

A um ano de terminar o seu mandato à frente da Provedoria de Justiça, José de Faria Costa defende que os serviços públicos têm de ter em conta as situações concretas com que as pessoas se debatem e não limitar-se a olhá-las apenas como mais um número. É a ele que recorrem aqueles que sentem que mais ninguém os ouve e o provedor garante que dá a mesma atenção ao mais complexo problema jurídico como a um simples pedido de ajuda de alguém que não sabe preencher o IRS. Com 66 anos de idade, o professor de Direito Penal da Universidade de Coimbra lamenta que quando entra numa cadeia saia de lá com uma certeza: mudou muito pouco. Faria Costa não foi apenas um crítico da austeridade dos tempos de Passos Coelho: também escreve ficção e poesia, sob o pseudónimo de Francisco d’Eulália. É o representante nacional do mecanismo para a prevenção da tortura no âmbito da convenção das Nações Unidas e já este ano assumiu a presidência da Federação Ibero-Americana de Ombudsman. Gosta de citar Nietzsche, Péricles e S. Tomás de Aquino.

Como qualifica o relacionamento dos portugueses com o Estado?
Tanto o consideram como qualquer coisa que está no adro da igreja, como algo que está no Terreiro do Paço. Há um jogo muito complexo entre dois pólos: por um lado, o português considera o Estado seu amigo, mas, por outro lado, existe um afastamento, um Estado reverencial. Depende das situações.

Mas não assenta muito na desconfiança?
Justamente. O que eu quero é recentrar essa relação na confiança.

Assume por vezes contornos kafkianos?
É uma analogia muito forte, mas acho que não: o cidadão português não fica à porta do castelo. Mas também tenho que admitir que há situações estranhas, difíceis — quase kafkianas.

Qual foi o caso mais estranho que já lhe apareceu?
Não gostaria de fazer um ranking de casos estranhos [ri-se]. Há também casos dolorosamente tocantes, como o de um idoso acamado a quem os familiares estavam a tirar a pensão, no Portugal profundo. Foram os vizinhos que me alertaram. Não foi caso único. Todos os dias me chegam casos dolorosos.

Há muitos casos como esse?
Há, há. Tocam-me profundamente, são situações muito duras que nos chegam respeitantes quer a idosos, quer a crianças.

O que pode o provedor fazer?
Contactei a GNR e a Segurança Social e o caso resolveu-se. A pessoa voltou a ficar na posse da sua pensão e foi institucionalizada. A minha função, nestes casos, é sobretudo de encaminhamento. Infelizmente, muitas vezes não posso fazer isso. O provedor não deve governar, nem julgar, nem legislar: deve ir mais longe e mais fundo, através do magistério da persuasão, da sugestão, da atitude moral. É esta a matriz, e quem não perceber isto não percebe o que é o provedor. O mais complexo dos problemas jurídicos, como um problema de constitucionalidade, vale tanto, para o provedor, como o simples pedido de ajuda de uma pessoa que não sabe preencher o IRS.

O papel de provedor é muito duro. Mas tem momentos gratificantes, como quando recebo uma carta de alguém com pouca instrução a dizer “Obrigado”. Não é gratificante para eu querer continuar. É gratificante porque me comportei como um ser moral.

Tem muitos pedidos de idosos?
Ai meu Deus. Tantos, tantos, tantos... Do Núcleo da Criança, do Idoso e da Pessoa com Deficiência, a linha do idoso é hoje a mais solicitada. A diferença é assustadora: na do idoso recebemos, em 2015, 2864 chamadas, contra 671 na linha da criança. Ao contrário do idoso, a criança tem hoje uma série de instituições que a vão protegendo — embora não de forma absolutamente convincente e plena.

Debate-se no Parlamento a criação de um observatório da criança. É uma duplicação de competências?
É uma questão à qual, com toda a sinceridade, não dou relevo, porque quem faz esse trabalho é efectivamente a Provedoria, que tem um núcleo a funcionar já há dezenas de anos, com um trabalho extraordinário. Haver várias instituições a proteger os mais frágeis não é mau. Compete é aos órgãos políticos perceber se isso é razoável do ponto de vista económico-financeiro.

Como vê a relação do fisco com o cidadão? É aceitável a inversão do ónus da prova e o “pague primeiro e reclame depois”?
Se formos para uma concepção de Estado autoritário, é óbvio que faz sentido. Mas cada vez mais o Estado deixou de ser autoritário. A relação com o fisco tem de ser de amizade, mas é claro que é muito difícil mudarmos de paradigma em 40 anos.

Não estará a relação mais amigável apenas para as pessoas mais esclarecidas, que têm uma conta de e-mail, por exemplo? Essa relação não se manterá mais hostil para as restantes pessoas?
Não posso estar mais de acordo. Em qualquer transformação de paradigma há sempre segmentos das populações que ficam mais afastadas. Muitos dos e-mails que chegam à Provedoria são os netos dos queixosos quem os escreve: nota-se pela semântica, pela linguagem usada. O esforço dos vários governos de aproximar as pessoas da tecnologia informática tem sido grande.

Não é injusto o Estado exigir certas competências às pessoas que elas não possuem?
O progresso não é uma linha recta sempre a subir — o Estado deve promover o progresso sem excluir ninguém. Esse ponto de equilíbrio é que é muito difícil de encontrar. Pergunto-me se na História houve alguma vez esse ponto de equilíbrio. Penso que nunca se encontrou. O que mudou é que temos consciência desses problemas, coisa que não sucedia no passado.

Quem fez o Simplex tem consciência de que em Portugal há ainda quem não saiba ler nem escrever?
Conheço bem a ministra [Maria Manuel] Leitão Marques. É uma pessoa sensível e não tenho a menor dúvida de que sim. Se, muitas vezes, a vontade de irmos mais além quebra esses pontos de equilíbrio, estou convencido de que o Governo corrigirá isso.

As queixas ao provedor contra a Segurança Social voltaram a aumentar. Percebe porquê?
Em situações de crise, em que o desemprego é profundo, aumenta a tensão entre o que o Estado deve dar e aquilo de que a pessoa precisa para ter uma vida decente.

O Estado trata bem os seus desempregados?
Está a pedir-me uma valoração que não posso fazer. Não tenho os indicadores necessários nem me compete fazer um juízo das políticas públicas nessa área.

E baseando-se nas queixas que lhe chegam?
Não posso dizer que os trata mal. Pode e deve tratá-los melhor.

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Não são humilhantes as apresentações obrigatórias periódicas nos centros de emprego?
Não serei tão forte, mas não é bom. Não é bom. Sobretudo em situações como a das pessoas que foram para o estrangeiro para encontrarem um emprego melhor. A máquina do Estado não pode ser tão fria. Deve contemplar as situações concretas com que as pessoas se debatem. Eu sei que a racionalidade inerente a tudo isto é a racionalidade do número. Mas nós não podemos ser números. Não somos só uma razão calculadora, somos muito mais do que isso — sem negar a necessidade de o Estado partir dessa razão calculadora. Se a Alemanha consegue patamares de excelência na produtividade é porque criou uma cultura diferente. Temos de ultrapassar a cultura do funcionário para entrarmos numa cultura do servidor do Estado — servindo o cidadão. Para os centros de emprego fazerem uma apreciação mais cautelosa das situações, têm de ter mais funcionários — mas isso aumentaria a despesa do Estado de forma escandalosa. Não pode ser!

Está a ser irónico.
[Faz uma pausa, rindo-se a seguir] Estou, mas simultaneamente a dizer aquilo que penso.

O seu mandato acaba daqui a cerca de um ano. Está disponível para continuar?
Sobre isso não digo uma palavra [ri-se]. Não quero fazer ruído. O meu cargo é político, tanto mais que sou conselheiro de Estado. Sempre me considerei parte da solução, não do conflito.

Voltando à desconfiança dos cidadãos perante o Estado, as sucessivas alterações legislativas em muitas áreas não potenciam esse sentimento? Aquilo que os cidadãos têm como assegurado num momento pode nada valer no momento seguinte.
Sou professor de Direito há 43 anos e sempre ensinei que se deve legislar pouco. Até se diz, a brincar, que devia ser proibido legislar durante seis meses — sobretudo no campo do Direito Penal. As leis devem ser límpidas, claras, precisas e bem escritas.

Já se queixou que isso nem sempre sucedia. Há um problema de leis mal feitas em Portugal?
Há, sem dúvida. A legística [estudo da elaboração das leis] é uma disciplina que devia ser mais bem estudada. Sobretudo em termos de elaboração de princípios no que toca à feitura das leis. Este problema relaciona-se com a vertigem do abismo do legislador. Como não se sabia explicar o sistema dos vasos comunicantes na Idade Média, criou-se o horror ao vácuo. E o nosso legislador tem, de certa forma, horror ao vácuo. Mal vê um buraquinho vai lá e preenche-o legislando. Esta teia híper complexa de normas sobre normas evidentemente dá mau resultado.

Acha que é intencional?
Não.

É legal estar-se preso preventivamente um ano. Mas é justo?
Só foi possível resolver o caso Madoff em seis meses porque estiveram 13 anos a investigá-lo. Podemos conceber um sistema anglo-saxónico que se baseia no inquérito e na pesquisa por meios policiais, em que a pessoa que está a ser investigada muitas vezes não o sabe. Queremos esse sistema ou um sistema em que é aberto um inquérito controlado por um magistrado? Em relação a certo tipo de criminalidade — organizada e económico-financeira —, optámos por aquilo que é a nossa tradição: o dominus do inquérito é o Ministério Público e está sujeito a prazos. Se são muito longos, é o poder político que o deve ajuizar. Tenho para mim que, em certas circunstâncias, podem ser prazos demasiado longos, noutras não. Considero, ao contrário de muitos colegas meus, que todos os crimes são prescritíveis.

Sente que o Governo o ouve?
A recomendação é a última arma do provedor. Mas o que importa é resolver as situações através dos meios informais: a persuasão, a sugestão, a indicação do caminho. E, muitas vezes, basta a abertura de um processo na Provedoria para a entidade visada resolver o problema: 75% dos casos de ilegalidade são resolvidos desta forma. Nesses 75%, 25% das vezes o queixoso não tem razão. O trabalho do provedor não é fazer recomendações, é resolver problemas dos seus concidadãos.

Qual é a taxa de acolhimento das suas recomendações?
Foram tão poucas… Fiz nove em 2015, quatro foram totalmente acatadas, uma foi acatada parcialmente e uma outra aguarda resposta. Três não foram acatadas.

Os direitos dos reclusos têm sido uma batalha histórica dos provedores. Com que cenário de deparou quando aqui chegou?
Os reclusos e os doentes institucionalizados com patologias do foro psiquiátrico são, para mim, os meus concidadãos mais frágeis, porque nem sequer têm voz. Quanto aos reclusos, eu, enquanto provedor, tenho o dever de defendê-los, mas mais ainda enquanto mecanismo nacional de prevenção [da tortura] e enquanto instituição nacional de defesa dos direitos humanos. A primeira vez que entrei na cadeia de Coimbra tinha 22 anos. Passados 44 anos, o que é que se fez? Tivemos uma revolução, avançámos muito na defesa dos direitos fundamentais, mas no campo da execução da pena fizemos muito pouco.

Mudou pouco dentro das cadeias?
Muito pouco. E cá estamos mais uma vez no velho problema da sustentabilidade económica.

O Orçamento do Estado para 2016, prevê que se gaste diariamente com as refeições de cada recluso 2,31 euros por dia. Chega?
É pouco, é pouquíssimo.

Quando visita uma cadeia, come a comida dos reclusos?
Vou ao refeitório e como com eles. Tenho encontrado quantidades suficientes para uma pessoa da minha idade, mas para um jovem ou um homem na pujança da vida tenho dúvidas de que seja suficiente.

Há um ano pediu mais meios para fiscalizar as prisões. Foram-lhe dados?
Ainda não. Tenho o dever de reivindicar mais meios para satisfazer os meus concidadãos, mas, simultaneamente, tenho de ter os pés assentes na terra. Há um comprometimento do Parlamento de que tudo será feito para que haja reforço de meios em relação ao mecanismo nacional de prevenção [da tortura].

Também detectou problemas nos centros educativos, destinados a jovens delinquentes?
É outro dos grandes problemas que temos. Porque são poucos e porque a saúde mental é um problema central.

Mais do que nas cadeias?
Estamos a falar de crianças, de jovens adultos, de pessoas em formação.

Há necessidade de mais acompanhamento psicológico e psiquiátrico?
Sim, sim. Não tenho a menor dúvida.

Quando esteve no Parlamento, contou um episódio que o marcou. Num desses centros deparou-se com uma rapariga completamente dopada.
Não sei se estava dopada, sei é que não estava em si. Não é fácil estar num centro em que se tem três meninas-mães, uma delas no hospital para ter o bebé e duas dentro do centro, sem o mínimo de condições. São os directores que vão inventando formas de tratamento humano para aquelas jovens mães.

Estes centros deviam desaparecer?
Não, bem pelo contrário. Devem é ser acarinhados, através de mais meios. As perturbações de ordem psicológica e psiquiátrica na adolescência são muito duras e marcam para a vida inteira.

Em entrevista recente, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça pôs em causa certas competências das entidades reguladoras, dizendo que não pode ser a mesma entidade a fazer a norma, a investigar uma suposta infracção e, por fim, a condenar. O que pensa disto?
É um problema central. A possibilidade de entidades reguladoras aplicarem coimas absolutamente astronómicas é aquilo a que nós, penalistas, chamamos uma troca de etiquetas. Aquilo que devia ser crime não é crime, troca-se a etiqueta mas o resultado é o mesmo. Aplico uma coima de meio milhão ou de um milhão através de um sistema sancionatório com menos garantias, muito mais frágil.

Está a falar de impunidade?
Não, não. São comportamentos que deviam ser punidos através do sistema jurídico-penal. Mas, para isso suceder, é preciso ser o Parlamento a dar uma lei de autorização, e tudo isso é complexo, demorado. Obtenho o mesmo resultado, trocando a etiqueta, dizendo que aplico uma contra-ordenação.

Parece-lhe grave?
Todas as políticas de trocas de etiqueta são graves. Mas ninguém nega que deve haver contra-ordenações dentro das entidades reguladoras.

 

 

 

 

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