A liberdade de expressão é o oxigénio das democracias

O rating do crime de difamação tem vindo a baixar

Tendo em contas nossas tristes tradições, a importância da liberdade de expressão nunca poderá ser demasiado realçada em Portugal. O valor da liberdade da expressão e a sua dimensão medem-se também pela possibilidade de se dizerem coisas parvas e absurdas, sem sentido, incómodas e desagradáveis ou, até mesmo, ofensivas e falsas.

Se não tivéssemos no nosso país uma ampla liberdade de expressão, não seria possível, como o foi há uns meses, um professor catedrático defender a alteração da Constituição para ser possível à coligação PSD-CDS provocar novas eleições que lhe permitissem obter a maioria necessária para poder formar governo; se não tivéssemos uma ampla liberdade de expressão, não poderíamos ter a recente alegria de ver e ouvir uma concorrente de um reality show a falar, numa linguagem descontraída, na xaroca e a explicar as suas dificuldades em obrar; se não tivéssemos uma ampla liberdade de expressão, nunca teríamos podido ouvir um economista num canal televisivo do Norte a esclarecer-nos que só a mão de Deus pode explicar a sua existência, porque a sua mãe não sabia fazer pénis.

Os exemplos podiam multiplicar-se ao infinito, mas a verdade é que, de vez em quando, há quem não goste da liberdade de expressão e recorra aos tribunais para procurar calar quem o incomoda. E durante muito tempo, graças a uma mentalidade retrógrada que dominava a nossa comunidade judicial neste campo, conseguiam calar e punir quem os incomodava ou perturbava. A aplicação da lei, nomeadamente do código penal com o crime de difamação, era feita mecanicamente e literalmente, esquecendo-se os julgadores de iluminar a legislação penal com a Constituição e com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).

Mas, felizmente, essa mentalidade já não domina o mundo dos aplicadores do direito. Determinante nesta evolução do nosso direito e da nossa Justiça foi o labor de uma fantástica instituição com sede em Estrasburgo: o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) que, de uma forma sistemática, veio afirmar a liberdade de expressão como um elemento estruturante da própria sociedade democrática e defender que as restrições a tal liberdade devem ser excepcionais e justificadas por uma “necessidade social imperiosa”.

No passado dia 2 do corrente mês, o Tribunal da Relação de Évora veio, assim e uma vez mais, reafirmar que “não há democracia sem pluralismo e que a democracia se alimenta da liberdade de expressão” e que “não é possível fazer uma análise do tipo criminal “difamação” sem ter presente a letra da convenção e a jurisprudência do TEDH”.

Estava em causa uma queixa-crime de um administrador de uma empresa que pretendia que fosse julgada pelo crime de difamação uma trabalhadora que numa acção judicial referira que o mesmo tinha uma relação amorosa com outra trabalhadora da empresa e que ambos a prejudicavam e perseguiam. Mas o juiz de instrução criminal determinara o arquivamento do processo, já que, como afirmou na sua decisão, se era certo que o texto em causa poderia ferir a sensibilidade do administrador, no entanto tais afirmações só atentariam contra a sua honra se nada tivessem que ver com o exercício do direito à acção judicial e de acesso ao direito e fossem “exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar”; o que não era certamente o caso, já que, atentos os indícios recolhidos, a trabalhadora tinha proferido, por escrito, as expressões em causa, no âmbito de uma acção judicial e no intuito de fazer valer o direito que julgava ser seu.

Recorreu o administrador para a Relação de Évora, mas os juízes desembargadores João Gomes de Sousa e António Condesso mantiveram a decisão de arquivamento, apoiando-se na evolução do entendimento do crime de difamação tendo em conta as decisões do TEDH que conferem, inequivocamente, um maior peso à liberdade de expressão sobre a honra das pessoas, “por muito que isso custe à nossa tradição jurídica e civilizacional napoleónica e à análise tipológica criminal exclusivamente positivista”. Para a Relação de Évora, a análise do tipo criminal “difamação” não se pode limitar a uma análise positivista, “que pode ser notável e algo coimbrã”, mas que é também algo desfasada do “ser” e do “dever-ser” jurídico-político europeu; o que aconteceu nesta evolução foi, de alguma forma, a “liberdade de expressão” anglo-saxónica ter-se imposto à “raison d’État” gaulesa e ao militarismo prussiano e, também certamente, a uma “qualquer arcaica concepção de honra sul-europeia que nos é também muito própria”.

Ao confirmarem o arquivamento da queixa, os julgadores recusaram-se, e bem, a assumir uma função censória, tanto mais que as expressões em causa tinham sido utilizadas num processo judicial em que quem as proferira estava na defesa do que julgava ser o seu direito. E se temos medo de dizer o que pensamos saber em tribunal, estamos muito mal...

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