A igreja

Andamos todos às turras nas Caxinas por causa do prédio que se constrói ao lado da igreja do Senhor dos Navegantes. A igreja respira mal com o mamarracho que lhe põem ao lado, oferta do executivo anterior, problema para o executivo actual. O padre não fala. A população quer ver aquilo desfeito. Eu compreendo. Pagámos todos a igreja. Lembro-me bem de nos acudirem à porta, tantas e tantas vezes, a buscar o contributo, que não era nada pouco. Fez-se o templo com o empenho de todos os habitantes, que genericamente são muito crentes. Compreendo bem que numa população cristã e sofredora como a das Caxinas a igreja represente uma dignidade que não pode ser agredida. Espanta-me que Mário Almeida, o anterior presidente, tenha cometido este tão grave erro à saída.

Acho injusto solicitar-se à nova presidente um milagre. Ela não pode implodir o prédio que o executivo anterior licenciou, e não pode simplesmente adquiri-lo. Temos uma das autarquias mais endividadas do país. Eu, como contribuinte deste concelho, não quero que esta asneira nos custe largos e insustentáveis milhões. A nova presidente está imobilizada pelo cumprimento da lei. Considero que devemos saber entender isso, que a autarquia hoje está a cumprir a lei. Dito isto, no entanto, queremos aquele edifício deitado abaixo, claro.

Sabemos que muitas terras têm as suas igrejas geminadas com todo o tipo de construção. Mas é verdade que o programa Polis previa um jardim para o lado da nossa igreja, e não se projecta uma espécie de barco gigante para o agredir com escudá-lo, como se o metessem numa garagem. Aquele barco é de ficar à vista do mar. Só assim faz sentido. É certo que aquele terreno estava baldio, sem nada nem ideia. Os responsáveis pela igreja poderiam havê-lo reclamado atempadamente. Umas plantas semeiam-se com alguma facilidade, podia aquilo estar a uso de outro modo, a mostrar que afinal se contava com aquela amplitude de espaço. Não houve um gesto. Agora virou um pandemónio.

Quer-me parecer que sobra para a própria população. Se não houver uma união entre todos, talvez voltando à colecta, aquele prédio não vai abaixo. Se for encontrado outro modo de acordo, não tenho dúvida de que hipotecará mais ainda a autarquia. E tenho dúvida que revista contornos absolutamente legais.

Vivo nas Caxinas há mais de trinta anos e aqui aprendi a ser gente. Sou daqui, com mais ou menos peixe à mesa, eu sou daqui. O que me enerva nesta questão é sentir que a urbanização deste lugar foi sempre algo secundarizada em relação ao centro burguês e aristocrático da cidade. Há uma permissividade para o atropelo dos direitos dos caxineiros que é inadmissível. Como continua a existir um preconceito insuportável contra as gentes desta terra. Estou farto dos risinhos e das piadinhas. Um ar de peninha que têm as pessoas para com os coitados que precisam de viver nas Caxinas. Eu vivo orgulhosamente nas Caxinas. Fui sempre profundamente respeitado nesta terra e aqui conheço gente de magnífica valência humana e de brilhante arte. Não aceito, por isso, que a aspereza do trabalho mais comum dos cwaxineiros possa desfavorecê-los, como se perdessem direitos, como se não precisassem de, como todas as pessoas do mundo, alcançar alguma redenção e felicidade. A igreja do Senhor dos Navegantes é um símbolo da tenacidade e da resistência desta gente, é símbolo da dignidade desta gente, por isso é pasmante que alguém possa ter descurado este assunto. E não se vende o último talhão da primeira linha de mar sem se saber exactamente o que se está a fazer.

Tenho uma espiritualidade muito própria, que é feita de poucos santos e menos igrejas ainda, mas é feita sobretudo de gente. Uma espiritualidade humanitária, em prol da defesa ética da experiência de se ser alguém, votado à ventura, à ânsia pela felicidade, pela necessária justiça, coisa igual e livre. É essa espiritualidade que nos atribui o direito de protestar, como quem avisa que estamos aqui e não somos menos valiosos que ninguém. É urgente que os nossos assuntos sejam levados a sério, sem folclores nem demagogias. Porque não é admissível que tudo se venda. Ser-se gente significa exactamente que há um reduto de nós que é inalienável, inatacável. Requer profundo respeito e autodeterminação.     

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