A fuga de médicos do Serviço Nacional de Saúde

A remuneração não é o principal motivo da partida dos médicos para o privado. A falta de reconhecimento e de valorização do trabalho dos médicos agora considerados como uma engrenagem do hospital criou um mal estar profundo.

Segundo os dados publicados pela Administração Central de Saúde (ACSS), trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) cerca de 27 mil médicos, dos quais perto de 9000 são internos em formação, o que nos dá um rácio de 2,6 médicos por mil habitantes, muito abaixo dos 4,3 ao nível nacional.

O que leva então os médicos a fugir do SNS, não ocupando vagas abertas a concurso ou abandonando os serviços, optando pela ida para hospitais privados ou emigrando?

Não é minha intenção fazer um estudo aprofundado das causas que estão por detrás das decisões destes jovens médicos a "trocar o certo pelo incerto", para parafrasear Adriano Correia de Oliveira na sua bonita canção "Emigração".

Cotejando as várias entrevistas a médicos emigrados publicadas nos media, as justificações mais frequentes são: "não pude escolher a especialidade que queria"; "degradação da formação"; "não são pagas as horas extras"; "falta de material"; "pressionados a cumprir metas de desempenho".

A escolha da especialidade continua a ser uma prova escrita, tipo multiple choice, instituída há mais de 40 anos, que em nada corresponde aos padrões atuais e que me leva a concluir que algo está errado e este método apenas beneficia os editores do Harrison, o manual que orienta a prova. Como dizia um colega nosso, o que quero é que os jovens saibam fazer uma história clínica, auscultar e palpar um abdómen, pouco me interessa que conheçam a última nota de rodapé dos 4 capítulos do Livro "Oficial".

Quer a entrada para o curso de Medicina quer a escolha de especialidade deviam ser precedidas de entrevistas e provas orais, com isenção e imparcialidade, que pudessem avaliar as expectativas de cada aluno e o seu perfil de acordo com as exigências da profissão. Aliás, há estudos feitos a concluir que não são os melhores alunos que acabam por ser os melhores médicos.

A degradação da formação deve-se em grande parte à ausência de passagem de testemunho entre os mais antigos e os mais jovens. Esta quebra deve-se ao recurso sistemático às reformas antecipadas pelos médicos seniores, desiludidos e impotentes perante a péssima gestão dos estabelecimentos de saúde e as sucessivas experiências de modelos hospitalares, para além de verem os seus proventos fortemente debilitados e assistirem à destruição das suas carreiras.

A remuneração de todos os médicos, consoante o grau na carreira, devia ser condigna. A oferta de baixos salários no SNS, ainda por cima fortemente tributada, não permite que fixemos nem os jovens nem os seniores nos estabelecimentos de saúde, e estes irão sempre procurar as compensações monetárias, no sector privado ou no estrangeiro.

Não são pagas as horas extras, opção tomada pelos governos anteriores que viram nos salários dos médicos a forma mais simples de reduzir a despesa pública. Cortes idênticos foram aplicados na aquisição de material clínico (aparelhos e próteses); chegámos ao absurdo de ter sítios onde se pararam as endoscopias gástricas porque os aparelhos estavam obsoletos e não eram substituídos.

A reestruturação do sistema de gestão interna para um modelo de gestão privada, iniciada em 2002 com os estabelecimentos públicos de natureza empresarial (EPE), retirou qualquer ética de administração e de organização no sistema de cuidados de saúde, introduzindo obrigatoriamente, sem a mínima explicação aos trabalhadores, regras empresariais da era industrial, tão bem caracterizada no filme "Os Tempos Modernos" de Charlie Chaplin, com fins lucrativos e políticas de redução de custos. O modelo de gestão privada é responsável pela destruição das carreiras médicas e da introdução dos contratos individuais de trabalho.

O Dr. Fonseca Ferreira, no seu artigo Evolução Histórica da Rede Hospitalar Nacional e das suas Carreiras Médicas (1), explica bem o conflito entre os médicos e a administração dos estabelecimentos, depois da aprovação do novo regime de gestão: "…o sector administrativo hospitalar tem dificuldade a assumir que, ao contrário das empresas, em que os funcionários superiores são os agentes programadores e decisores, ao passo que os operários situados no fim da escala, são apenas executores, nos hospitais dá-se o contrário, são os médicos, situados na frente de trabalho, os principais programadores e decisores…"

Um acesso de controleirite aguda, delírio burocrático e ingerência abusiva no trabalho médico atacou os responsáveis da saúde. A introdução de uma tecnologia informática com programas deficientes veio interferir, prejudicando o trabalho dos médicos e desesperando os doentes, com tempos de espera de mais de 5 horas para obter uma simples receita médica.

Há 40 anos, criámos um Serviço Nacional de Saúde, que apesar de ter deficiências, e de ainda não corresponder às nossas expectativas e exigências, é elogiado em todo o mundo. Sempre soubemos que os desafios iam ser permanentes; nunca pensámos, porém, que tivéssemos de lidar com a possibilidade de destruição de tudo o que foi conquistado.

1) in Sociedade Médica dos Hospitais da Zona Sul/ Separata da Revista de Clínica Hospitalar ( Órgão da Sociedade) Ed. Celom.Reedição do Conselho Regional do Sul 2016

Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos

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