As facturas que hão-de vir

No Ministério da Saúde, entre Dezembro 2011 e 2015 o pessoal da Saúde foi reduzido em 11,2% em número. Em orçamento muito mais. As mortes mais visíveis estão aí para pagar a factura.

Para além das facturas imediatas e escandalosas, resultantes da ideologia e da prática da austeridade, tais como a falência do BANIF e a morte de doentes em fins-de-semana por falta de intervenção especializada, há as facturas que este Governo vai ter de pagar e que a população empobrecida vai pagando e que se reflectem no médio e longo prazo. Sem escândalo.

Se as contas forem feitas e o dinheiro rastreado, veremos, ou temos esperança de ver, quem ganhou com os buracos (afinal a banca estava mesmo “rota”) por onde escaparam os quantitativos que o Estado vai repor, subtraindo ao orçamento de todos nós. Como já foi dito, daria para pagar mil neurocirurgiões em fins-de-semana sem fim. Porém, a população, que conta as moedas e as notas, se as tiver, será difícil perceber os caminhos ínvios do dinheiro virtual. Boa parte percebe sim a falsa imagem dos “cofres cheios”, criada por eficientes publicitários para uso político. Porque ainda são do tempo ou da imaginação dos grandes cofres e das notas lá dentro. No entanto, a batalha da informação terá que ser vencida.

Quanto à morte de doentes devida a fins-de-semana sem determinada especialidade, a responsabilidade também é rastreável. As escalas de urgência foram assinadas por directores de serviço e de urgência, foram sancionadas por directores clínicos, que por sua vez integram direcções do hospital com o conselho de administração, o qual reporta à Administração Regional de Saúde. Também se pode ver quem protestou, reclamou, denunciou, por vias internas ou externas. Porque há quem tenha muito “respeitinho” e há quem não tenha. Como escreveu Ana Arendt, a obediência também é uma responsabilidade.

Durante estes quatro anos houve quem não aceitasse “o tem que ser”, houve quem desse a cara. Em Novembro de 2013 o Presidente do Conselho de Administração e director clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN, Hospital de Santa Maria e Hospital Pulido Valente) que ocupava este último lugar desde 2005, não teve medo de dar uma entrevista ao Expresso onde relatava a situação de quase ruptura financeira. E com isso pode ter sido “incomodado”. E durante o surto de gripe de 2014, muitos vieram a público dar a cara, houve directores de urgência que se demitiram.

Um primeiro tempo deste novo Ministério da Saúde será para apagar fogos, obviar a situações urgentes imediatas, olhar para o panorama geral do país e antecipar possíveis descalabros.  O ministro e a equipe que escolheu têm grande capacidade para isso, por conhecerem bem o tecido do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a localização dos cortes. Por serem defensores do serviço público. Em paralelo virão os planos globais, de ampliação das Unidades de Saúde Familiar, de activação das estruturas das unidades primárias que devem penetrar na comunidade, de  articulação formal e informal com as estruturas locais, pensadas, co-decididas e executadas por quem está na base da pirâmide. De articulação formal e informal dos cuidados primários com os hospitais. E finalmente pensar a rede hospitalar, os centros de tratamento e os centros de referência. Os serviços centrais funcionam bem na informação: sabem quantos enfermeiros e médicos tem o SNS, onde estão colocados, que idade têm, quanto ganham, quantos exames pedem e o que é receitado. Há matéria e massa crítica para ter um plano geral e um conceito para as estruturas e o seu funcionamento, mesmo sabendo que tem que se vencer inércias.

Todavia virão em breve as facturas de curto prazo: os equipamentos a chegarem ao fim, com manutenção inexistente ou já impossível. Vejamos um exemplo: o investimento em equipamento médico no CHLN foi em 2010 de 12.892.000€ e em 2013 de 1.371.620€. Quanto ao informático foi de 3.153.000€ em 2010 e de 77.530€ em 2013. Por isso, quando se fala em falhas nas colonoscopias, nas ressonâncias magnéticas, nos aparelhos de cardiologia de intervenção, não estamos a falar de coisas abstractas. Às vezes a realidade está presa por arames e muito boa vontade. Os fornecedores vão reclamar. E há necessidade urgente de contratação de pessoal, para além de médicos e enfermeiros – administrativos, assistentes operacionais, técnicos de informática, tão necessários como os outros grupos profissionais.

Os números falam por si. Em Maio de 2015 estavam sem médico de família atribuído 126.152 utentes na Região Norte, 150.757 no Centro, 799.006 em Lisboa e Vale do Tejo, 42.579 no Alentejo, 114,742 no Algarve. Total: 1.233.236. Se considerarmos que um médico de família deve ter entre 1.500 e 1.800 utentes, façam-se contas. E contratos. Percebe-se que vão ter que se hierarquizar prioridades e estabelecer fases, agrupamento a agrupamento. Mas têm que ser feitas. E o custo das urgências hospitalares irá compensar, diminuindo.

De acordo com o Sindicato dos Enfermeiros faltam 25 mil enfermeiros no nosso país. A presença de enfermeiros nos cuidados na comunidade diminui as vindas ao Centro de Saúde e melhora a condição das doenças crónicas; os enfermeiros suficientes e sem estarem exaustos na enfermaria diminuem as infecções hospitalares e há estudos que avançam uma diminuição em 7 por cento da taxa de mortalidade. É necessário trazê-los de volta dos países para onde tiveram que emigrar. A conta dos contratos salda-se a curto prazo com os benefícios económicos para o SNS. Tal como é necessário não deixar fugir alguns dos melhores especialistas médicos para os serviços privados, por razões puramente financeiras.

Tudo isto é consequência dos cortes feitos no SNS e que são objectivos. De 2005 para 2010 o orçamento para a Saúde subiu de 5.834 milhões para 8.698 milhões; de 2012 para 2015 desceu de 9.694 milhões para 7.402. Num país que é um dos países da Europa com menos custos per capita na Saúde e em que há mais comparticipação que “sai do bolso” dos cidadãos, onde é que foram cortar estes milhões? Antes de tudo no pessoal, em número, em salários e em pagamento de horas extraordinárias. No Ministério da Saúde, entre Dezembro 2011 e 2015 o pessoal da Saúde foi reduzido em 11,2% em número. Em orçamento muito mais. As mortes mais visíveis estão aí para pagar a factura.

Mas as doenças e as mortes invisíveis, as ocultas, essas não aparecerão nos jornais e estender-se-ão por médio e longo prazo. Com um quarto da população na zona da pobreza, não se morre de fome, mas adoece-se por carências.

A falta de nutrientes marca as crianças e a sua aprendizagem. As infecções respiratórias dos adultos foram mais frequentes. Os tratamentos dentários e oftalmológicos não foram feitos. A falta de auto-estima, a depressão e os pensamentos suicidas são uma mancha de óleo. Esta quietude da população pode aliás explicar que 62% tenham votado à esquerda e possibilitado a solução alternativa mais surpreendente da Europa, sem ser precedida de movimento de massas. E que agora se fale de esperança, baixinho e com cuidado, não vão os deuses acordar.

Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa

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