A eutanásia não é de esquerda

Acabar com a vida para acabar com o sofrimento é um acto de má prática clínica que me recuso a praticar e a ensinar mas é também um sinal de retrocesso civilizacional.

Remonta aos tempos mais antigos a cedência ao pedido de morte assistida por parte de quem sofre. Nos campos de batalha, na Idade Média, usava-se o punhal da “misericórdia” para acabar com os guerreiros que sofriam ferimentos graves, para acabar o seu sofrimento. O pedido de morte assistida surge também na tradição judaica, por razões um pouco diferentes, Saul pediu ao seu escudeiro: “Arranca a tua espada e atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes incircuncisos, e me traspassem, e escarneçam de mim” (Samuel 31). Saul está na realidade moribundo pelos ferimentos causados e sabe que não sobrevive mas não é o sofrimento que o leva a fazer o pedido mas tão só o receio do mal que lhe possa ainda a vir a ser causado, mais moral do que físico.

A tradição, no nosso país, relata o papel dos abafadores na comunidade dos cristãos novos em Trás-os-Montes. Quando se aproximava a hora da morte, estas personagens eram convocadas para que no momento final não houvesse práticas religiosas cristãs nem se corresse o risco do moribundo fazer revelações sobre as suas verdadeiras crenças aos agentes da Igreja Católica. Esta tradição ficou imortalizada por Miguel Torga nos Contos da Montanha, cuja leitura se recomenda vivamente pelo desenlace do conto: “O Alma-Grande”. Torga, médico como eu, coloca as dúvidas de todos nós nos olhos sábios, porque inocentes, de uma criança.

Tem havido muita discussão à volta do tema o que me parece ser positivo, quando a discussão é desapaixonada. Falta, contudo, a discussão médica bem orientada ao problema principal. A grande batalha dos profissionais de saúde é contra o sofrimento, seja ele de natureza física seja ele de natureza moral, sabendo que o segundo exacerba de forma significativa o primeiro. Custa-me compreender por que razão se não tem discutido a forma como se pode acabar com o sofrimento. Por outro lado, é bem sabido que a vontade expressa das pessoas não é uma crença sólida, mas é modulada pelas circunstâncias, e as circunstâncias da vizinhança da morte com sofrimento não são as melhores conselheiras.  

Conhecem-se bem, hoje em dia, os mecanismos moleculares da dor e os profissionais das clínicas da dor sabem bem como agir nas diferentes situações. É, no entanto, no domínio dos cuidados paliativos que mais se têm desenvolvido os conhecimentos. Os cuidados paliativos são uma especialização exigente dos cuidados de saúde, infelizmente mal reconhecidos quer pela população em geral quer até (infelizmente) por muitos profissionais de saúde e pelos responsáveis pelas decisões em saúde. Há medidas de relação interpessoal que importa incrementar, há prescrição adequada de fármacos que tem que ser conhecida (tanta coisa se tem dito e escrito que não corresponde às boas práticas clínicas) e há ainda as modernas técnicas de estimulação cerebral que podem ter um papel dominante na reposição da qualidade de vida, mesmo nos períodos finais da vida. Claro que esta aproximação é complexa e dispendiosa pelo que nem sequer tem sido trazida para a discussão. Será, de facto, melhor que não se discuta esta questão em termos económicos (porque acaba por ser uma questão económica). O problema não é, também, de natureza religiosa, podendo, no entanto, ser considerado de natureza espiritual. É, sem sombra de dúvida, uma questão de ciência médica que tem que saber recrutar os seus melhores recursos para combater o sofrimento e trazer quem sofre à qualidade de vida que todos merecemos. Mas sobretudo temos que concordar que o problema não é de natureza política, e muito menos será de desentendimentos entre esquerda e direita.

Acabar com a vida para acabar com o sofrimento é um acto de má prática clínica que me recuso a praticar e a ensinar enquanto professor mas é também, acima de tudo, um sinal de retrocesso civilizacional.

Professor de Neurologia

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