A educação de Hazel Soares, 94 anos

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Hazel Soares recorria a um método de estenografia para anotar as explicações dos professores num caderno de papel DR

No Mills College de Oakland, umas das universidades "históricas" da Califórnia, toda a gente sabia quem era Hazel Soares. Ela era aquela senhora simpática, "velhinha", que chegava sozinha no seu carro, nunca faltava a uma aula, fazia sempre os trabalhos de casa, participava em todos os debates e não perdia uma única visita de estudo - isto apesar de já ter mais de 90 anos de idade.

"A universidade era linda, cheia de jardins e árvores e edifícios históricos. Os meus professores tinham metade da minha idade e os meus colegas eram mais novos do que os meus netos. Mas sempre me senti muito confortável", conta Hazel Soares, que acaba de cumprir uma grande ambição: tirar um curso superior. "Foi uma experiência maravilhosa!"

Na cerimónia de entrega dos diplomas, em Maio, a speaker do Congresso dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, oradora convidada, mencionou o nome de Hazel Soares aí umas cinco ou seis vezes durante o seu discurso aos finalistas - e de cada vez que isso aconteceu, ela empinou a cabeça e aceitou graciosamente os elogios, sorrindo e agradecendo a deferência.

Tal reconhecimento e atenção não lhe pareceram inapropriados no final do curso. Afinal, durante os três anos de estudo, Hazel não recebera nenhum tratamento especial. Aos 94 anos de idade, foi a estudante mais velha a licenciar-se naquela prestigiada e exclusiva universidade californiana, vocacionada para um público feminino. Foi, ou melhor, será: o curso de História de Arte só ficará oficialmente completo quando for classificado o seu último trabalho sobre jardins japoneses no Norte da Califórnia. "É nisso que vou passar o meu Verão", informou Hazel Soares, numa conversa telefónica com a Pública.

No fim do Verão, a nova historiadora de Arte espera poder aproveitar uma oportunidade inesperada para começar a dar uso à licenciatura. Explica-nos: "A senhora Pelosi, muito gentilmente, aludiu ao meu desejo de ser docente num museu de arte da região. E no final da cerimónia, um senhor veio ter comigo e entregar-me um cartão, dizendo que estava no Conselho de Administração e que eu devia contactá-lo. Pode crer que lhe vou telefonar mal entregue o trabalho dos jardins." Nascida em 1915, Hazel sempre quis estudar, mas aos 17 anos, quando terminou o liceu, os Estados Unidos viviam a Grande Depressão: não só era tradicional que as mulheres interrompessem aí a sua educação, como as famílias precisavam de todos os (parcos) rendimentos para sustentar aqueles que ainda não podiam trabalhar.

A mais velha de três irmãs, Hazel vivia em Richmond, uma pequena cidade muito perto de Berkeley, onde fica a imponente universidade de Stanford. Mas em 1931, só seguia para a universidade quem tivesse muito dinheiro. "A minha mãe estava ansiosa que eu saísse de casa. Como não podia ir para a faculdade, inscrevi-me para aprender enfermagem. Era um programa que oferecia alojamento e alimentação, e ainda dava uma pequena remuneração", recorda.

A formação durou 14 meses, no fim dos quais foi trabalhar para um sanatório de tuberculosos. A enfermagem foi a sua carreira até se casar e ter o primeiro filho, quatro anos mais tarde. Com um horário das sete da manhã até às 11 da noite, e sem possibilidade de deixar o bebé, Hazel ficou em casa. Seguiram-se outros dois meninos. Quando tinha 30 anos o marido morreu inesperadamente. Sem trabalho, Hazel mudou-se para San Leandro, uma localidade pequena a menos de vinte quilómetros onde vivia uma das suas irmãs mais novas.

Dos Açores à Califórnia

Ellsworth Bettencourt Soares (que toda a gente conhecia e tratava por Al) nasceu em San Leandro, na Califórnia, a 26 de Junho de 1915, filho de Mateus Bettencourt Soares, um agricultor imigrado da ilha de São Jorge, nos Açores, e Maria Tosetti, originária do Norte de Itália. A sua juventude foi passada a trabalhar a terra para o seu pai, que mantinha uma quinta, e depois a ajudar o sogro numa padaria. Aos 28 anos foi chamado pelo exército norte-americano para combater na Segunda Guerra Mundial. Embarcou para a Europa, onde se viu envolvido na chamada ofensiva das Ardenas, em que quatro exércitos alemães avançaram sobre as tropas aliadas, numa derradeira tentativa de evitar o seu progresso depois da vitória da Normandia.

Foi um mês e meio de combate intenso e particularmente sangrento, que apesar de vitorioso para o lado aliado, teve um custo elevado para as divisões norte-americanas, apanhadas de surpresa nas florestas da Bélgica. Várias unidades caíram ou tiveram de se render - no final da ofensiva, contavam-se mais de 19 mil mortos norte-americanos, 48 mil feridos e 23 mil soldados feitos prisioneiros. Entre eles estava Ellsworth: tinha sido dado como morto e deixado ao abandono depois de uma explosão que quase o fez perder as pernas - foi recolhido e salvo pelo exército nazi, que o tratou e manteve em cativeiro durante 10 meses.

No regresso aos Estados Unidos, Ellsworth Bettencourt Soares viu-se "alienado" pela família. A filha Regina conta que nessa altura, os familiares dos combatentes eram avisados de que os homens poderiam voltar da guerra perturbados e estranhos. "Explicavam-lhes que eles podiam ser voláteis". Ellsworth divorciou-se pouco depois. Deixou de trabalhar com o sogro e foi contratado pela Gerber Baby Food, uma das maiores empresas de Oakland.

Hazel conheceu Ellsworth/Al na casa de uma amiga que também tinha sido enfermeira. O marido desta tinha morrido na guerra e Hazel fora apresentar-lhe as condolências. Pouco depois chegou Al, que tal como o colega caído, tinha sido padeiro em San Leandro. "Nessa altura, a cidade tinha seis ruas e quatro padarias!", lembra Hazel.

A jovem viúva e o soldado recém-divorciado entenderam-se bem, mas o casamento só aconteceu passado um ano. "Ele ficou tão encantado comigo e tratava-me tão bem!", assevera, "Levava-me a jantar todos os domingos, oferecia-me presentes, trazia-me doces. Al era o mais novo de cinco irmãos. O pai morreu quando ele era criança, e ele aprendeu a cozinhar com a mãe. Nessa época, era muito pouco comum os homens cozinharem. Apaixonei-me por causa da comida."

Hazel guarda o apelido que viajou desde o arquipélago açoriano para os Estados Unidos, mas sabe muito pouco sobre as origens ou a biografia de Mateus, o sogro que nunca conheceu. O seu marido, baptizado com um nome inglês, nunca aprendeu a falar a língua paterna. Também nunca aprendeu italiano. "Agora é diferente, mas na altura era assim", reflecte. "As pessoas falavam inglês e pronto. É uma pena."

No início, a vida do novo casal não foi fácil. "Al era veterano de guerra, e tinha direito a alojamento, mas não havia muitas casas onde coubessem os nossos quatro filhos", prossegue Hazel (três rapazes do primeiro casamento dela e uma menina de Al). O casal poupou dinheiro durante dois ou três anos e no início da década de 50 conseguiu comprar a sua própria casa, com um quintal suficientemente grande para plantar legumes, vegetais e flores. É nessa casa que Hazel vive (sozinha) até hoje.

Com Al, que morreu em 2004, ainda teve mais três filhos, um rapaz e duas raparigas. Regina, de 52 anos, a mais nova, falou à Pública sobre o quotidiano familiar. "Acho que éramos uma família pouco tradicional no sentido em que a educação era muito privilegiada: os meus pais nunca pouparam tempo nem dinheiro na educação dos filhos", refere.

Os irmãos Soares foram todos inscritos numa escola privada católica. Ouviam música clássica no automóvel, iam à ópera e a concertos sinfónicos. Quando viam filmes na televisão, o pai preocupava-se em dar aos filhos um contexto histórico ou uma explicação sobre o que estavam a assistir. Quando o homem foi à Lua, Ellsworth insistiu em ter a família reunida em frente ao televisor. "Foi um grande evento familiar, lembro-me do entusiasmo do meu pai e de como ele nos fez realmente sentir que estávamos a assistir a uma das grandes cenas da história mundial".

Quando Hazel, já reformada, disse a Regina que estava a pensar matricular-se numa universidade, a filha não se surpreendeu. Durante muitos anos, a mãe estivera demasiado ocupada a criar uma família e a trabalhar - mas a sua paixão de adolescente pelo estudo não estava extinta, só adormecida. Hazel tinha brevemente entretido a ideia de voltar à escola quando soube da abertura de uma universidade comunitária [community college, no original], com propinas de 50 cêntimos por disciplina. O seu projecto era tirar o curso de bibliotecária. "Disseram-lhe que demoraria 12 anos para tirar o curso e que ela já estava velha de mais para isso. Imagine, ela podia ter tirado esse curso duas vezes!", brinca a filha.

Um ano depois, esse curso fechou. Mas Hazel não se deixou desmoralizar e antes de cumprir 80 anos inscreveu-se no Chabot College de Hayward, onde, em 2000, recebeu o diploma de bacharelato (os estudos não graduados, no sistema de ensino norte-americano) do programa de Humanidades. Uma doença do marido levou-a a fazer nova pausa nos estudos. Mas sete anos mais tarde, matriculou-se no Mills College para terminar o seu percurso académico e concluir a licenciatura.

Hazel já tinha ouvido falar no Mills College; o interesse cresceu depois de ouvir uma filha e neta falarem da visita que tinham feito ao campus universitário. O estabelecimento foi fundado como um seminário para meninas em 1852, e foi depois evoluindo transformando-se primeiro num colégio feminino de artes liberais em 1906 e mais tarde, em 1990, numa universidade mista (uma decisão que não foi isenta de polémica, gerando protestos e até mesmo uma greve de duas semanas dos funcionários e estudantes). Mas as mulheres continuam a prevalecer: no último ano lectivo, constituíam 80 por cento do corpo estudantil.

A sua neta tinha conseguido uma bolsa para estudar lá. "Mas não foi, recusou. Tinha um namorado e não queria ficar tão longe dele. Na altura fiquei muito intrigada", recorda Hazel. Intrigada e curiosa: "E se eu também tentasse?", arriscou.

Hazel sabia que teria de pagar propinas altas, mas podia requerer apoio financeiro - ao abrigo da chamada GI Bill, o Estado suporta as despesas de educação das famílias militares. "Fui lá, falei com o departamento de inscrições e a minha candidatura foi aceite. Até me disseram que estavam encantados por eu querer estudar lá!", lembra.

"A experiência foi muito interessante", declara. "Tornei-me amiga de metade dos professores, que obviamente eram todos mais novos do que eu. E encantei-me com as minhas colegas, umas meninas ainda muito inseguras de 19 anos, mas sempre muito cuidadosas comigo, sempre cheias de consideração".

O mestre Miguel Ângelo

Quando chegou o momento de escolher o curso (de declarar a licenciatura), Hazel informou que pretendia formar-se em História de Arte. Perguntamos-lhe porquê. "Só agora fui forçada a pensar nas razões deste meu interesse. A minha explicação é esta: ao crescer, tinha em casa uma colecção de dez livros, semelhantes a uma enciclopédia, que se chamavam Livros do Conhecimento [Books of Knowledge, no original] e abordavam muitos temas diferentes. Lembro-me que o capítulo que mais me fascinava era o que dizia respeito a Miguel Ângelo: tinha a vida do artista, fotografias do seu trabalho, a Capela Sistina, a estátua de David, que me impressionou muito com onze anos...", confessou.

[Há quinze anos, Hazel encontrara-se finalmente frente a frente com a estátua do mestre renascentista italiano. "Sempre tinha dito que um dia queria ir à Europa ver a o David", e a companhia de uma sobrinha tornou a viagem possível. "Foi um momento maravilhoso, até mesmo dramático", explica. "Maravilhoso".]

Quando frequentava o liceu, Hazel tinha-se oferecido para trabalhar na biblioteca escolar. "Descobri que adorava aquilo, era muito divertido. Gostava de poder manusear os livros, de andar a arrumá-los, a decidir para onde iam conforme os temas... A minha ideia de voltar para a escola era ser bibliotecária, mas quando essa oportunidade passou tive de pensar noutra coisa. E então lembrei-me do David do Miguel Ângelo, e o estudo da arte pareceu-me a coisa mais lógica e natural", justifica. A conselheira académica de Hazel no Mills College, Mary-Ann Milford, garantiu que a nonagenária não foi objecto de tratamento diferenciado por causa da idade. "Ela teve de fazer as mesmas leituras, estudar as mesmas horas, frequentar as mesmas aulas, entregar os mesmos trabalhos, passar os mesmos exames - ela teve de fazer tudo o que faz qualquer outra aluna de 20 anos de idade".

Bem, nem tudo. Por exemplo, em vez dos seis créditos mínimos, Hazel só fez dois por ano (uma disciplina por semestre). Ao contrário dos seus colegas, nunca usou um computador. Nas aulas, em vez de teclar apontamentos num portátil, recorria ao método de estenografia English Short Hand para anotar as explicações dos professores num caderno de papel. E ao estudar, não fazia pesquisas no Google e na Wikipédia: ia à biblioteca e consultava volumes de bibliografia.

Todos os seus trabalhos de casa, incluindo a dissertação, foram dactilografados numa velha máquina de escrever de marca Brother. "Nunca precisei de aprender a lidar com computadores", observa Hazel, que conta com a ajuda da filha Regina para lidar com as novas tecnologias, incluindo gerir a sua conta de Facebook - que enumera aeróbica aquática e viagens como "Actividades", jardinagem como "Interesses" e a famosa canção de Charles Aznavour La Bohème como a música preferida. "Já lá tenho mensagens de todo o mundo, desde a Nigéria até à Espanha. As pessoas são tão simpáticas, escreveram para me dar os parabéns", informa.

A senhora Soares não usa telemóvel: a hora combinada para a entrevista telefónica, numa terça-feira, foi calculada para Hazel ter tempo de regressar a casa depois da sessão matinal de hidroginástica que a leva à piscina duas vezes por semana há mais de 30 anos. "Queria ter a certeza que já estava vestida e seca quando ligasse", justificou.

O compromisso era para uma conversa de meia hora, mas Hazel não se importou de falar muito mais tempo. Sempre sem pausas, hesitações ou esquecimentos. Por exemplo, sabe dizer de cor os nomes dos 40 netos e bisnetos, que vivem longe - "no Oregon, Washington, Minnesota, ...". Os mais próximos vivem a mais de 400 quilómetros. Hazel ainda viaja de vez em quando para visitar os que estão mais distantes. "Todos eles têm direito a um postal de parabéns, prendas de Natal é que já não, são muitos", justifica-se.

Comer bem e sem remédios

Uma genica invulgar nota-se na sua voz firme - e constata-se depois quando Regina nos apresenta as provas fotográficas de algumas das suas aventuras: Hazel aos 80 anos, a escalar um glaciar no Alasca, ou aos 90 anos, apetrechada com um enorme colete salva-vidas. "Ela decidiu que lhe faltava ou saltar de pára-quedas ou fazer rafting", explicou a filha, que estava ao seu lado enquanto o barco de borracha lutava com rápidos de categoria quatro. "Ela adorou!"

Hazel gosta de se deitar tarde - "fico acordada até às 11 da manhã, e por isso levanto-me tarde." O dia, para ela, começa por volta das nove da manhã. Todos os dias trata do seu quintal, onde crescem muitos dos vegetais que são a base da sua dieta. "No Verão os dez tomateiros dão tanto fruto que estou sempre a fazer conserva; curgetes são tantas que nem dou vazão, já cheguei a ter de deitar fora."

É precisamente aos vegetais e frutos - Hazel não come comida processada - que atribui a sua longevidade e a saúde de ferro de que goza. "Tive a sorte de casar com o filho de um velho agricultor português, que me ensinou a comer bem. Só coisas saudáveis, plantadas no meu quintal, favas, acelgas, ...".

Da última vez que foi ao médico, este demorou-se na avaliação da sua ficha clínica. "Ele olhava para os papéis, olhava, olhava e, finalmente, mandou chamar a enfermeira", relata Regina, que acompanhou a mãe na consulta. "Está à procura da lista de medicamentos?", quis saber. O médico anuiu. "Não existe. Não tomo remédios. Não preciso", informou Hazel. O que toma, ao fim do dia, é um copo de vinho, ou então um gin tónico. "Sou muito grata pela minha saúde. E também pelo facto de ainda poder conduzir".

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