A Disney é uma máquina, mas faz sonhar

As crianças querem ser cantoras, bailarinas, patinadoras, à semelhança dos seus ídolos, personagens que vêem em programas de televisão como Violetta e, a partir de amanhã, Soy Luna. Investigadores e pais alertam: às vezes é preciso chamar as crianças à terra.

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As irmãs Maria, Leonor e Rita têm aulas de patinagem artística PEDRO ELIAS
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A mãe das três irmãs suspeita de que ficarão “malucas” com a nova série: a protagonista é patinadora Pedro Elias
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Num hotel no centro de Milão, Karol Sevilla e Ruggero Pasquarelli, as novas estrelas da Disney (ela é Luna, a protagonista de Soy Luna, ele é Matteo, o galã que a tentará conquistar) cantam e rodopiam nos corredores entre entrevistas com a imprensa. Estão a promover a nova série infanto-juvenil Soy Luna — ela de longos cabelos encaracolados, maquilhagem e vestido de saia rodada, sem grandes decotes; ele de blazer e camisa. A imagem deles vai, em breve, estar um pouco por todo o mundo, mas não receiam a máquina da Disney. É uma responsabilidade mas, acima de tudo, um sonho. “A Disney fala sempre de sonhos. Isto é um sonho para mim. O meu sonho está a cumprir-se”, frisa ao PÚBLICO Karol Sevilla, que tem 16 anos.

Na série (que será transmitida diariamente no Disney Channel às 20h30), Luna Valente vive com os pais em Cancún, no México, e passa os tempos livres a andar de patins pelas ruas. Um desafio profissional força os pais a mudarem-se para Buenos Aires, na Argentina, e Luna terá de se adaptar a uma nova vida, nova escola e novas amizades, que a levarão a refugiar-se num rinque de patinagem.

No Clube Desportivo e Recreativo Os Lobinhos, em Belas, as gémeas Maria e Leonor, de sete anos, e Rita, de dez, entusiasmam-se quando se fala de uma nova série onde a patinagem será um dos destaques principais. (“São 80 capítulos sobre rodas. É a primeira vez que a Disney aposta numa série com patinagem”, diz Karol Sevilla, distinguindo-a de Violetta.). As três irmãs têm aulas de patinagem artística há mais de um ano e a mãe, Sara Cunha Serra, suspeita de que vão ficar “malucas” com Luna.

“A Violetta mexia muito com elas. Queriam ser cantoras. Vieram do concerto [no Meo Arena] fascinadas com os vestidos e as luzes. Com esta nova série de patinagem, acho que se vão comparar muito com a personagem. Vão ver se conseguem fazer igual”, exemplifica, pressentindo que esta será mais “educativa” do que Violetta, que se focava demasiado em “namoricos e cantorias”. E prevê que venha a haver “uma procura imensa pela patinagem artística. Quem não conhece vai querer informar-se, quem não faz vai querer fazer. Pode ser bom, é uma modalidade que está um bocadinho esquecida”.

As crianças vão-se distraindo com o treino a decorrer no campo do clube desportivo e com um colega que aparece com uns ténis novos com luzes brilhantes, e dão respostas vagas. Maria entoa a música En mi mundo, de Violetta — é a única de que se lembra. “Agora já não está na moda”, esclarece Rita, que na altura da “febre” com a série chegou a ensaiar coreografias para as músicas com as colegas da escola e aprendeu algumas palavras em espanhol. Falam da dificuldade em aprender a patinar — em Milão, Karol Sevilla revelava, entre risos, que antes de começar as gravações de Soy Luna não se conseguia equilibrar nos patins e que todos os actores tiveram seis meses intensivos de aulas — e que até já ficaram com nódoas negras, mas nunca desistiram, uma mensagem também transmitida pelas telenovelas infanto-juvenis.

Do ponto de vista narrativo, as séries da Disney têm sempre “uma alteração do estado das coisas, uma dificuldade, algo que é superado, que coloca um desafio e que faz com que a história se desenrole numa tensão entre dois palcos. No caso de Hannah Montana [Miley Cyrus] era entre a sua vida familiar e a vida do espectáculo, neste caso será entre um ambiente anterior, de origem e a mudança”, avalia a investigadora Ana Jorge, que trabalhou o tema das culturas infanto-juvenis durante o doutoramento e é professora na Universidade Católica.

É, também, importante reflectirem a sociedade actual e ilustrar problemas com que os jovens se consigam identificar, para estarem preparados para as “vicissitudes da vida”, considera Sara Cunha Serra. “Há coisas que se passaram na Violetta que também já me aconteceram, como uma discussão com uma inimiga”, diz Luana, de dez anos, “ou o sentimento de solidão numa escola nova”, confirma Margarida Braga, da mesma idade.

O cenário de mudança de país não é novo, mas torna a série actual. “Estas séries são um ponto de ligação ao mundo”, refere Ana Jorge, evidenciando que este caso de emigração forçada pela crise económica pode ter um apelo mais alargado e potenciar debates sobre o tema.

“Pessoas como nós”

A produção da nova série da Disney começou em 2012, quando Violetta ainda estava a crescer e a tornar-se, pouco a pouco, um ídolo infanto-juvenil. O primeiro vislumbre do que seria Soy Luna foi publicado no canal de YouTube da Disney latino-americana em Janeiro. A 14 de Março, data da estreia na América Latina, a primeira canção Alas já tinha sete milhões de visualizações, milhares de partilhas no Facebook e tornou-se um dos tópicos mais populares do Twitter. Rita sabe o que aí vem — “Deu um anúncio na televisão a contar um bocadinho da história dela”, justifica — mas Maria e Leonor ainda não tinham ouvido a música e ficam fixadas no pequeno ecrã do telemóvel enquanto ouvem Alas e vão perguntando quem é este e aquele personagem, dão palpites sobre quem será a vilã ou a melhor amiga de Luna e reconhecem Matteo como o Federico de Violetta.

Margarida Braga e Luana também já sabem tudo o que há para saber sobre a série — sabem os nomes carinhosos que Matteo chama a Luna, como Luna lhe responde, os amigos e os inimigos. Pesquisaram na Internet, viram imagens, vídeos. “Isto tudo e ainda nem começou”, suspira a mãe, Carmen Gravata, que já chamou Margarida “à terra” umas quantas vezes para a menina perceber que o mundo não é só cantoria e que as coisas não são tão fáceis como parecem na televisão.

“A Disney tem a fórmula muito bem estudada e é exímia em perceber como as culturas infanto-juvenis se caracterizam em determinado momento”, o que lhe serve para depois apontar para aí os seus produtos, considera a investigadora Ana Jorge. As redes sociais predominam entre os jovens. É lá que vídeos, excertos de episódios e músicas são distribuídos, apresentados aos públicos e depois partilhados. “Isso remete para uma cultura de comunicação e de recomendação entre pares que só acentua a pressão social para que os jovens consumam os mesmos conteúdos num determinado momento”, explica ao PÚBLICO. Ana Jorge realça que a Disney tem vindo a alargar o seu público-alvo (crianças e jovens entre os 5 e os 12 anos) a adolescentes, por “entender que é por aí que pode rentabilizar de outras formas o universo de ficção”.

As gémeas Maria e Leonor e a irmã Rita respondem em uníssono quando lhes perguntamos se preferem desenhos animados ou séries televisivas interpretadas por actores. “Parece mais verdadeiro, são pessoas como nós. Nos desenhos animados é tudo falso, não têm quase piada nenhuma”, diz Leonor, confessando que vê alguns desenhos animados quando não é a irmã mais velha, que já gosta mais de assuntos de “crescidos”, a controlar a televisão. Também Margarida e Luana não têm dúvidas: preferem séries “com pessoas”.

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Margarida Braga orgulha-se do merchandising da série Violetta dr

Perdida a vergonha, atropelam-se entre as frases e admitem que de vez em quando espreitam séries “de adultos” como Investigação Criminal, mas “as legendas são muito rápidas”. As favoritas, por enquanto, são Jessie (2011-2015) e Austin & Ally (2011-2016), actualmente a serem transmitidas no Disney Channel e das quais sabem relatar todos os episódios e vidas das personagens ao pormenor.

Ana Jorge explica esta reacção imediata: “Estas séries com histórias ficcionadas com personagens humanas inspiram um tipo de ligação com o público diferente. Para os mais velhos, depois, são propostas outras formas de consumo, como os CD, os concertos, o merchandising”, enumera.

Rita, Maria e Leonor tinham camisolas, cadernetas de cromos, lápis, mochilas da Violetta. Chegaram a ter o quarto coberto de posters e queriam, até, lençóis e capas de edredão para as camas. A mãe teve de dizer “não” e apelar ao bom senso. Margarida Braga ainda tem tudo — na Páscoa até recebeu um ovo de chocolate da Violetta, diz orgulhosa — e espalha as suas preciosidades no jardim do CCB. “Esqueci-me de trazer o microfone”, lamenta.

“Quando se atinge um certo nível de popularidade, surge uma pressão para o consumo. Essa é uma dimensão importante e não surge por acaso, é pensada desde o início pela Disney. A série é apenas o primeiro ponto de contacto”, explica Ana Jorge.

A irmã de Margarida, Bárbara, de 16 anos, acompanhou Hannah Montana e agora já não liga aos fenómenos — e as opiniões, entre os próprios jovens, não são unânimes. “Este tipo de telenovelas não tem grande interesse e as histórias não contribuem muito para adquirir novos conhecimentos. No geral, acho que o objectivo dos canais de televisão, ao passarem este tipo de programa, é fazer com que as crianças gostem das personagens e comprem todo o tipo de mercadoria relacionado com elas”, contrapõe uma adolescente de 14 anos, com uma irmã de sete, da rede Dream Teens — um projecto criado em 2014 pela associação Aventura Social, em parceria com a Fundação Gulbenkian e a Sociedade de Psicologia da Saúde, e que resultou na constituição de uma rede nacional de “adolescentes consultores de saúde”, com coordenação da psicóloga Margarida Gaspar de Matos.

O que fazer, então, quando os miúdos querem ter tudo igual às personagens da série? Impor limites “serenos mas firmes”, diz Margarida Gaspar de Matos, que integra a equipa do Health Behaviour in School-Aged Children, da Organização Mundial de Saúde. É responsabilidade dos pais, mas também das escolas, dar “ferramentas aos jovens para se munirem face a estes fenómenos poderosos por parte das indústrias”, continua Ana Jorge, e “pensarem exactamente qual o nível de identificação com estes conteúdos e produtos, se realmente gostam, se é porque estão à frente dos olhos e a pressionar a compra”. Já Luana constata que “é para comprarmos tudo, sim. Eu já não peço nada da Disney há muito tempo. Guardo o dinheiro para as coisas boas, a comida, a água e as coisas para a minha casa nova”.

“De uma forma muito prática, quando as crianças e jovens pedem algum tipo de objecto que seja igual aos das personagens das séries, a ideia é que os pais pensem com eles se têm realmente necessidade, o que é que aquele objecto significa, se têm recursos para o comprar, se não é uma questão de moda. E pensar com eles que a série foi feita exactamente para os fazer querer aquele objecto naquele momento, quando há muitas outras opções”, reforça Ana Jorge.

Diálogo entre a família

Ser personagem da Disney traz uma carga de responsabilidade acrescida — os actores terão milhares de seguidores atentos, dentro e fora do pequeno ecrã. Antes de Karol Sevilla (Luna), já Martina Stoessel (Violetta, 2012-2015) e Miley Cyrus (Hannah Montana, 2006-2011) compunham o rol de celebridades juvenis. Cyrus marcou a passagem para a idade adulta com um corte completo com a Disney — “Não sou a Disney. Não quero saber”, dizia à norte-americana W Magazine em 2014 — com línguas de fora, nudez ou linguagem rude (e os álbuns Bangerz de 2013 ou Miley Cyrus & Her Dead Petz de 2015 que fazem esquecer Hannah Montana); Stoessel deu concertos em nome próprio e envolveu-se em nova produção cinematográfica, Tini — A Grande Mudança de Violetta (com estreia marcada para 5 de Maio), que aborda as pressões com que teve de lidar e a sua vida pós-Violetta.

“Temos de ser muito responsáveis e passar mensagens sempre positivas”, diz Pasquarelli, de 22 anos, que também entrou no fenómeno Violetta, com um papel secundário. Ao seu lado, Karol Sevilla fica séria e reconhece a responsabilidade. “Temos uma equipa muito grande que cuida da nossa personagem e da sua história. Mas temos de cuidar de nós”, diz, sobre a aparência física e a linguagem que devem ter em entrevistas e contacto com o público. “A verdade é que também depende da forma como te educaram em casa, nós somos assim na nossa casa, somos pessoas bem-educadas e sem maus pensamentos e isso depois não custa quando o passamos para o trabalho”, continua.

Com o sucesso das séries televisivas, os actores têm um impacto crescente nas decisões de jovens e crianças — mas se os mais novos se querem vestir à imagem e semelhança da sua personagem favorita, a ideia de mimetização por parte de adolescentes em relação ao comportamento dos seus ídolos é “uma espécie de mito”, afirma Ana Jorge. No caso de Miley Cyrus, a hipersexualização pós-Hannah Montana traduziu-se em desilusão e ressentimento ou, por outro lado, criou um fascínio distante face à transgressão. “Por vezes, é uma oportunidade para viver, através da vida de outra pessoa, uma coisa que nós próprios não faremos”, exemplifica a professora da Universidade Católica.

Os comportamentos dos ídolos juvenis criam, antes, “formas de questionar” e uma boa oportunidade de diálogo. O fenómeno deve ser desmontado, avaliado e criticado em ambiente escolar e familiar, defende Ana Jorge. “As coisas mais díspares podem ser aproveitadas para uma boa reflexão em família”, corrobora a psicóloga Margarida Gaspar de Matos, realçando que os próprios comportamentos e atitudes das personagens podem “facilitar a comunicação em família”. “Em última análise, demasiado tempo em frente ao ecrã é menos tempo para outras actividades de lazer mais diversificadas, como ler, tocar um instrumento, conversar, pintar, desenhar”, prossegue Margarida Matos, “mas também ninguém vai querer ter um filho que é o único na escola que não sabe quem é a Luna”. 

É preciso conta, peso e medida e novos tipos de programação televisiva no serviço público. Deveria questionar-se a “dominação destes produtos de uma indústria poderosa como é a Disney como sendo a única forma de cultura/lazer para os jovens. O importante é dar-lhes mais opções”, defende Ana Jorge, e é urgente estes temas entrarem na agenda da educação.

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Luna, a estrela da nova série infanto-juvenil "Soy Luna" DR
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