A culpa irá continuar a morrer solteira?

Nada justifica que se tenha tentado aproveitar o lado mais tétrico dos acontecimentos, como o número de mortos dos incêndios, para efeitos de chicana partidária e populismo desbragado, como aconteceu com o PSD e alguns dos seus acólitos tribunícios.

Nada se compara, é certo, com o delírio que assaltou a Casa Branca, ultrapassando tudo o que se poderia prever – e já era deveras inquietante – desde a tomada de posse de Donald Trump. Quando é o Presidente da primeira potência mundial que, incapaz de concretizar qualquer iniciativa política, exceptuando a nomeação de um juiz ultraconservador para o Supremo Tribunal, introduz um cavalo de Tróia dentro da sua própria fortaleza e parece querer fazê-la ir pelos ares com alguns dos homens mais fieis da sua equipa inicial, somos obrigados a rever os parâmetros de demência a que estávamos habituados.

Estamos felizmente ainda longe disso, neste jardim à beira-mar plantado mas já muito ardido pelos fogos de Verão, com as incongruências, irresponsabilidades, oportunismos mórbidos e faltas de decência elementar que puseram a nu. Em todo o caso, há muito que não assistíamos a uma tal erupção de casos e comportamentos tão descontrolados, inexplicáveis e reprováveis, como se as altas temperaturas tivessem secado também o discernimento mental e moral dos actores políticos (mas não só). O facciosismo chegou a um tal nível caricatural, quase de afrontamento «futebolístico», que impede qualquer escrutínio sensato das questões em causa, desde os incêndios e a estatística das respectivas vítimas ao roubo de armas nos paióis militares. Oscila-se entre a desresponsabilização pura e simples e os ultimatos bélicos, como num combate primitivo entre os bons e os maus.

Ora, nem uns nem outros têm razão e é até demasiado fácil percebê-lo, o que nos arrasta para o terreno pantanoso da má-fé. Por um lado, parece evidente que, para além de motivos sazonais ou fortuitos, nem os incêndios nem os roubos de armas isentam as autoridades (políticas ou militares) das graves imprevidências que elas, persistentemente, recusam assumir. Mas, por outro lado, nada disso justifica que se tenha tentado aproveitar o lado mais tétrico dos acontecimentos, como o número de mortos dos incêndios, para efeitos de chicana partidária e populismo desbragado, como aconteceu com o PSD e alguns dos seus acólitos tribunícios.

Obviamente, pode discutir-se o «segredo de Justiça» que rodeava a divulgação da estatística oficial dos mortos de Pedrógão, até a PGR o ter feito, aparentemente, sob pressão política. Fazia sentido ou não esse segredo? À primeira vista, não. E o facto de o Governo se ter distanciado do caso, argumentando com a separação de poderes, pode ter justificado especulações de que desejaria evitar expor-se ainda mais num terreno tão candente.

Mas o frenesim doentio da polémica sobre a exactidão desse número (e que motivou, por exemplo, uma manchete absurda do Expresso) logo expôs um propósito de exploração panfletária e obscena de uma grande tragédia humana. Não será possível destrinçar uma coisa da outra? Ou seja, o direito a saber quem efectivamente morreu é compatível com a disputa macabra sobre a estatística dos mortos (os que soçobraram por efeito directo do incêndio e os outros)?

Ora, a exploração despudorada deste tema acabou por dissolver o debate necessário sobre as graves falhas políticas (e militares, no caso de Tancos) que explicam a devastação e a insegurança do território (nomeadamente a descoordenação das forças de combate e equipamentos de prevenção), além da ausência de uma estratégia florestal e de desenvolvimento do interior esquecido do país que se vem arrastando ao longo dos tempos e de sucessivos governos. Finalmente, o pior de tudo é o risco de não se ter aprendido nada com aquilo que aconteceu – e continua a acontecer, neste novo folhetim tétrico dos fogos de Verão. Por cegueira e mesquinhez política a culpa irá continuar a morrer solteira?

(Por impedimento pessoal, esta coluna não se publica nas próximas duas semanas) 

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