A bolota mostra o seu poder

Andamos há décadas a achar que a bolota é alimento para porcos e a desperdiçar mais de metade da que existe em Portugal. Mas novos estudos mostram que aquela que no passado foi considerada o “alimento dos homens invencíveis” tem um enorme potencial: sem glúten, com alto poder antioxidante, uma gordura semelhante à do azeite e até compostos que podem ajudar ao combate de doenças como o cancro e o Alzheimer.

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A primeira vez que Pedro Mendes encomendou ao seu fornecedor uma saca de bolota, este perguntou-lhe se ele tinha algum porco para criar. O chef do restaurante do Hotel Marmòris, em Vila Viçosa, que queria as bolotas para as usar na sua cozinha, recordou esta história na sexta-feira perante as muitas dezenas de pessoas que se deslocaram até à Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, para ouvir falar precisamente da bolota e do papel que esta pode ter na alimentação dos homens – e não apenas dos animais.

Ao fim de anos a pensar que era “o único maluco” a interrogar-se sobre por que é que não comemos mais bolota, Pedro Mendes percebeu agora que há uma série de gente interessada no assunto. Um deles é Rui Coelho, da pastelaria Landroal, no Alandroal, que também andou muitos anos a lutar pelo reconhecimento da bolota, e que levou para o encontro no Freixo do Meio alguns dos doces que criou, os já famosos pastéis de nata de bolota, mas também o pão de rala de bolota e o rançoso de bolota.

Quando decidiu organizar o symposium Bolota: o futuro de um alimento com passado, Alfredo Cunhal Sendim, o proprietário do Freixo do Meio, sabia que ia conseguir reunir algumas pessoas interessadas no tema, mas não imaginava que iria aparecer tanta gente que já trabalha a bolota em produtos diferentes – numa pequena feira a meio da tarde apareceram, entre outros, as broas de bolota e mel de Estremoz e as tortas de bolota da Dom Alentejo, os licores de bolota da Vale do Mestre, os bolinhos e bolachas das Vergadas Aromáticas, três irmãs de Gondomar que decidiram aproveitar as bolotas desperdiçadas na propriedade da família, ou as tartelettes de bolota e leite condensado e os bombons de bolota com chocolate do Moinho de Pisões.

Isto para além dos produtos desenvolvidos no Freixo do Meio, do já comercializado café de bolota, aos biscoitos em forma de bolota, passando por algumas estreias como uma bebida fria de bolota, ou os hambúrgueres, croquetes e enchidos feitos com bolota, um projecto de Manuel Laranjeira da empresa Induxtra, que já desenvolveu vários produtos vegetarianos e agora aceitou o desafio de ver como resultaria com a bolota. Havia ainda uma banca da Frulact, empresa portuguesa que fornece preparados de fruta para iogurtes, e que aceitou também fazer a experiência de integrar bolota em iogurtes líquidos e sólidos.

Parecia apenas um encontro descontraído – ao almoço foi servido um cozido à portuguesa feito na herdade e integrando bolota – de pessoas interessadas no tema. Mas, na realidade, foi o culminar de um longo trabalho iniciado no momento em que Alfredo Sendim, que conseguiu no Freixo do Meio recuperar o sistema de montado tradicional da região, olhou para as bolotas das azinheiras e sobreiros que não eram aproveitadas na sua propriedade e pensou que não fazia sentido desperdiçar um recurso destes.

Fundamental neste projecto foi a parceria com a Escola Superior de Biotecnologia da Católica-Porto, que estudou as características nutricionais e funcionais da bolota e chegou a conclusões surpreendentes, que a investigadora Manuela Pintado apresentou à audiência. Rica em fibra e proteína, com um perfil de lípidos semelhante ao do azeite e sem glúten (o que a torna particularmente interessante para os doentes celíacos), a bolota revelou-se ainda muito rica em compostos antioxidantes.

“Foi um processo de estudo de quatro, cinco anos”, contou Manuela Pintado ao PÚBLICO. “Começámos por fazer uma extracção com água e concluímos que a casca da bolota tem uma riqueza antioxidante tão grande que poderíamos pensar também na parte cosmética, aplicando-a por exemplo num creme anti-envelhecimento, ou anti-inflamatório e cicatrizante.”

Pensando na alimentação, começaram por estudar o café (a denominação de café aqui é apenas para facilitar e porque deriva também de um processo de torra, mas não há cafeína na bebida de bolota que daí resulta). “Quisemos perceber se com a diluição os compostos antioxidantes se mantinham. E vimos que a bebida tem um efeito importante de protecção da oxidação do DNA [que ajuda a prevenir tumores], e não tem qualquer toxicidade. Em certas plantas que têm muitos antioxidantes pode haver um efeito duplo: comportam-se como antioxidantes até uma certa concentração e a partir daí invertem e podem ser pró-oxidantes. No caso da bolota, testámos isso usando concentrações cada vez maiores e concluímos que tal não acontece.”

Concentraram depois o trabalho nas bebidas funcionais, criando a bebida de bolota, à semelhança das bebidas de aveia, arroz e outras que muitas pessoas consomem como substitutos do leite. Aqui surgiu mais uma boa notícia, após testes feitos com fezes de dadores voluntários: a bebida de bolota mostrou a capacidade de promover o crescimento de bactérias benéficas para os microorganismos na flora intestinal dos humanos. “A nossa microbiota intestinal está relacionada com muitas doenças que que temos hoje como a obesidade ou a diabetes. E sabemos que através de alguns alimentos podemos modelar a flora.” Manuela Pintado explica que foram feitas comparações com alguns dos sumos à base de frutos vermelhos e a conclusão foi que “a bebida fria de bolota tem um potencial antioxidante muito superior ao que existe no mercado”.

O passo seguinte foi ver se estas bactérias sobreviviam em bebidas fermentadas, como os iogurtes, e daí surgiu a colaboração com a Frulact, que desenvolveu três tipos de iogurte (que não estão no mercado, são apenas testes) integrando a bolota: um com polpas de pêra, maçã e kiwi e 1% de farinha de bolota, outro de pêssego, muesli e bolota, e um terceiro de maçã, canela e bolota.

Por fim, com a participação do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto foi estudado o efeito do ácido clorogénico, em que a bolota também é rica, no tratamento de doenças neurológicas degenerativas. “O ácido clorogénico tem um enorme efeito no combate aos radicais livres”, afirmou o investigador João Relvas, que apresentou as conclusões, concluindo que “a bolota é um alimento interessante do ponto de vista clínico”, com um potencial que tem que ser mais estudado para aplicação em doenças como o Alzheimer.

Mas, e se tudo isto for um sucesso, há em Portugal bolota suficiente para responder a uma eventual procura? Alfredo Cunhal Sendim não tem dúvidas de que há, e cita o estudo preliminar feito por Miguel Sottomayor da Católica do Porto, e apresentado também na sexta-feira. Os dados mostram que 55% das bolotas que existem em Portugal (sobretudo no Norte e no Alentejo) são desperdiçadas. Da produção anual média de 400 mil toneladas por ano, são usadas para a engorda dos porcos na montanheira cerca de 84 mil toneladas. Se se usasse apenas metade da que é desperdiçada, daria cerca de 80 mil toneladas, o que representa o dobro da castanha que é produzida em Portugal (e comercializada). Miguel Sottomayor calcula um potencial económico que pode rondar os 13,3 milhões de euros.

Na Herdade do Freixo do Meio, Alfredo Sendim estudou já a melhor forma de apanhar a bolota e de lhe tirar a casca e a pele, onde está concentrado o maior número de taninos, mas que pode dar o gosto mais amargo e adstringente ao alimento. “Tradicionalmente tirava-se a casca com o calor e depois à martelada, mas é um processo muito caro e dispendioso”, disse. “Mas, depois de um contacto com a empresa Sortegel, vimos que faria sentido colocar a bolota na linha industrial da castanha, conseguindo assim um produto mais barato e acessível”. Actualmente preservam a bolota ultra-congelada e vendem o pão (que tem também farinha de trigo) e os bolos com bolota na loja que têm no Mercado da Ribeira, em Lisboa.

E, ao mesmo tempo, continuam a trabalhar para que a bolota recupere em Portugal a importância que teve no passado, antes de ser associada à fome e à alimentação dos animais. Ana Fonseca, especialista em montado do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas da Universidade de Évora, lembrou como no passado a bolota era parte da alimentação – e há várias receitas a provar isso mesmo. Houve até um tempo em que “era considerada o alimento dos homens invencíveis”, sublinhou a investigadora. Agora, depois de muitas décadas a ser vista apenas como comida para porcos, a bolota está de volta para mostrar o que vale.

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