A base do direito ao esquecimento no Facebook está no Código Civil que faz 50 anos

É aqui que encontramos as regras sobre casamento, filhos, personalidade, contratos e outras coisas do nosso dia a dia. É o código de cidadania que espelha e conforma a sociedade que somos.

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O Código Civil é flexível: foi fácil adaptá-lo ao casamento entre pessoas do mesmo sexo JOÃO HENRIQUES

É o código da cidadania, que regula os movimentos da nossa vida em sociedade desde que acordamos até nos deitarmos, por vezes em silêncio, por vezes de forma desabrida. Por isso é que à entrada da exposição que o Ministério da Justiça organizou para comemorar os 50 anos do Código Civil se lerá uma frase a dizer que este é o código “em que mais fielmente há-de espelhar-se a sociedade em que escolhemos viver”. A exposição do ministério anda a circular por várias cidades, e na quarta-feira chega à Universidade de Coimbra, onde fica até 7 de Dezembro.

Nem todos concordarão com esta ideia, pois o Código Civil (CC) pode ser um espelho mas também o motor de mudanças. A verdade é que por ele se pode tirar a temperatura dos costumes de uma sociedade. Por exemplo, até 1977 os homens eram os chefes de família e tomavam as decisões da vida do casal.

O CC não regula apenas o nosso dia-a-dia, regula também a nossa existência, desde que somos concebidos, até à hora da nossa morte, lembra ainda Carlos Sousa Mendes, secretário-geral do Ministério da Justiça, que esteve na organização desta exposição.

Como é que o casamento mudou ao longo dos anos? Quem pode casar-se com quem? Há igualdade entre os cônjuges? Quem fica com os filhos em caso de divórcio? Que direito de propriedade seguimos? Quem fica com a herança se morrermos? O que é uma coisa? Onde começa a personalidade jurídica?

A estas e a outras perguntas CC de 1966, que tem 2334 artigos, cinco livros – e que ainda vigora, embora com adaptações, também em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

Código Civil é…

O CC de 1966 veio alterar o chamado Código Seabra, de 1867, que dava destaque aos direitos individuais e interesses patrimoniais dos cidadãos. Introduziu um maior “equilíbrio entre os interesses individuais, os de terceiros e os da comunidade”, sublinha a informação disponível sobre a exposição.

Mas o que é, concretamente, um Código Civil? “É um conjunto de regras de comportamento, que se destina a ser aplicado e cumprido ou sancionado, relativamente a todas as situações existenciais entre cidadãos, e entre empresas e cidadãos, que estão numa posição de igualdade e em que uma das partes não tem poderes de autoridade”, responde Remédio Marques, professor de Direito na Universidade de Coimbra. “Todas as situações de direito de propriedade, sobre as pessoas, heranças, família, contratos, têm um conjunto de regras que visam solucionar conflitos”, previstas no CC.

Além da primeira parte, geral, o CC tem quatro livros dedicados ao Direito das Obrigações, ao Direito das Coisas, ao Direito da Família e ao Direito das Sucessões. Passado este tempo todo há, claro, áreas em que é preciso fazer alterações e por isso a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, anunciou que uma comissão as vai estudar, diz Carlos Sousa Mendes. Mas no geral “é um código muito bem conseguido”, afirma. Um dos exemplos da sua “plasticidade” é a introdução do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010, considera.

Ao longo destes 50 anos, fizeram-se 68 alterações, sendo que a grande reforma foi a de 1976/1977 – era Almeida Santos ministro da Justiça. Na comissão de revisão, presidida por Isabel Magalhães Colaço, participou a actual presidente da Fundação Champalimaud, Leonor Beleza.

Porém, há áreas em que o CC praticamente não sofreu alterações, como na parte geral, o primeiro livro, ligado aos direitos de personalidade, sublinha o secretário-geral; hoje, por exemplo, o chamado direito ao esquecimento no Facebook e nas redes sociais (a possibilidade de apagar de vez o nosso registo na Internet se violarem a nossa intimidade), tem base em normas escritas há 50 anos, acrescenta. Surge como uma concretização do artigo 70.º/2: “. . . a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”. 

O princípio da boa-fé

Aprovado em 25 de Novembro de 1966, o CC entrou em vigor em Junho do ano seguinte. A sua criação foi coordenada por João de Matos Antunes Varela, então ministro da Justiça, e participaram nele nomes como Fernando Pires de Lima e Rui de Alarcão, da Universidade de Coimbra.

Para a elaboração do Código Civil de 1966, foram apontadas várias razões. Entre elas, Antunes Varela destacou “a vincada tendência social na estruturação jurídica da vida económica que obriga a rever aspectos fundamentais no regime das obrigações e dos contratos e na organização da propriedade” ou “o acentuado declínio da sociedade patriarcal que força o legislador a modificar a posição da mulher nas relações pessoais e patrimoniais com o marido, bem como a situação dos filhos sujeitos ao poder paternal”.

Entre essas grandes mudanças, segundo Rui de Alarcão, salienta-se “a valorização de princípios normativos, de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados”. É o caso do princípio da boa-fé – que impõe uma conduta honesta, correcta e leal –, "princípio esse de que tanto a doutrina como a jurisprudência têm lançado mão com grande frequência, o que representa uma muito significativa mudança". 

É o Código Civil um reflexo da sociedade em que escolhemos viver? “Normalmente os códigos civis espelham as regras que os cidadãos constroem nas relações quotidianas de maneira informal”, responde Remédio Marques. “O Código Civil vai atrás. Mas, por vezes, em certos domínios, como aconteceu com o Direito da Família a seguir à revolução de 1974, foi a situação oposta: o legislador, pedagogicamente, como que ‘impôs’ relações de igualdade, relativamente ao estatuto da mulher casada. Ainda que o estatuto da mulher não levasse a esse reequilíbrio, teve que ser o legislador a impor.”

Já em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2010 a situação foi diferente: seria uma situação posterior que veio prever uma nova figura jurídica através de uma lei. “Não se mexeu no CC.” Apenas se alteraram frases como “o casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente”, eliminando a última expressão, “sexo diferente”.

Há 27 anos a usar o CC, Remédio Marques não hesita em dizer que do ponto de vista técnico é “um modelo de quase perfeição”, muito “pela forma como as palavras e frases estão colocadas e foram medidas”. “Porque o sentido de uma determinada solução jurídica tem muitas vezes a ver com as expressões e conceitos indeterminados utilizados – admito que seja dos mais perfeitos. Não digo que não careça de alteração. Por exemplo, provavelmente em matéria de coisas, na consideração que se deve ter perante os animais não-humanos, o CC necessitará dessa distinção: os animais não-humanos não são coisas como uma esferográfica.”

Voltando a 1966: olhando para trás, Rui de Alarcão lembra que, apesar de na altura estarem no período salazarista, foi “dada grande liberdade a quem colaborou na feitura do Código”. Tanto que na comissão de 1977 participaram várias pessoas que colaboraram no Código Civil de 1966. O Código “foi feito com sentido de futuro”, sublinha. "Um código não é letra morta, mas uma coisa viva.”

Algumas ideias do Código Civil de 1966

As mulheres

Artigo 1672.º Residência da mulher: A mulher deve adoptar a residência do marido, excepto (…).
Versão reforma de 1977, artigo 1673º Os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família (…)

Artigo 1674.º O marido é o chefe da família (…) competindo-lhe representá-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum. Desaparece

Os filhos 

Artigo 1583.º Parentesco é legítimo quando todas as gerações que formam a respectiva linha são legítimas (…)
Versão reforma de 1977: revoga o parentesco legítimo e ilegítimo

As coisas

Artigo 202.º Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas

“Quem cala não consente”

Artigo 218.º O silêncio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção

(adaptado da exposição dos 50 anos do Código Civil)

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