A autópsia de um certo país

A possibilidade de vir a suceder uma tragédia como a de Pedrógão só era imprevisível para quem andasse ao lado do que se estava a passar no país.

Depois de ter assistido a uma das maiores manifestações de ignorância que tenho visto, não consegui resistir ao impulso cívico de escrever algumas linhas sobre um assunto em que a poeira ainda persiste no ar. Na verdade, não deixa de ser espantoso como à conta de um evento indiscutivelmente novo e chocante como o incêndio de Pedrógão proliferam os mesmos especialistas de todo o lado, a maior parte deles lançando diatribes e diagnósticos absolutamente infalíveis para o problema dos incêndios rurais em Portugal. Mas ainda mais deprimente é para mim constatar que boa parte desses “tudólogos” tem menos de 40 anos, e não sabe do que fala, pois se deduz que, por terem nascido, medrado e vivido “no meio dos centros comerciais de uma qualquer grande urbe”, com toda a probabilidade, não saberão distinguir um carvalho de um sobreiro, ou mesmo um eucalipto de uma azinheira. É caso para dizer, como com outro remate se dizia na minha juventude (tenho 61 anos), que se a ignorância pagasse imposto há muito que o nosso deficit estaria reduzido a zero dando lugar a um gigantesco superavit. Avancemos.

O que venho de dizer serve para realçar que só os portugueses que não têm tido contacto com o que aconteceu ao Portugal rural de há 50/40 anos podem dar à tragédia de Pedrógão o título “Como foi possível?”. O que realmente faria todo o sentido seria antes estoutro: “Como é que isto só agora aconteceu?” Na verdade, a possibilidade de vir a suceder um fenómeno deste tipo só era imprevisível para quem andasse ao lado do que se estava a passar no país. Durante muitos anos fez-se enraizar a conveniente ideia de que “o fogo posto” era exclusivamente obra de tarados; ou de vinganças pessoais; ou de madeireiros ávidos de lucrar com a madeira queimada. Que o “problema” seria eliminado com a condenação desses marginais a penas de prisão exemplares. E que os tribunais não se preocupavam com a libertação ou absolvição dos incendiários. Seriam os tribunais que, com a severidade do seu dictat, poderiam dissuadir uns quantos psicopatas de acenderem o fósforo na courela do vizinho. Que com condenações exemplares se combateria a imprevisibilidade dos fogos. Que os fogos continuavam porque os tribunais, ou não se ralavam, ou eram condescendentes com os facínoras. Em suma, condenando os próprios tribunais, o povo tinha os juízes como últimos culpados e todas as outras instâncias de poder podiam estar descansadas. Ora, tal como já li, a imprevisibilidade serve para esconder a ignorância, não interessando agora distinguir entre ignorância negligente ou dolosa. É a ignorância tout court.

Passando a explicar. Quem há 50/40 anos deambulasse pelo Portugal rural do Norte ou do Centro facilmente constatava que estava diante do que hoje se chamaria um “fabuloso paraíso de biodiversidade animal e vegetal” em que o desenrolar da vida das pessoas era harmonioso para a natureza: para além do pinheiro-bravo, abundavam então na floresta daquelas regiões espécies como o carvalho, a nogueira, o castanheiro, o freixo, o salgueiro e mesmo o sobreiro; a matéria combustível dos solos era totalmente aproveitada para cozinhar, para aquecer as habitações e para as “camas do gado”; os ciclos produtivos das plantas nos campos e das matas eram propiciados pela regularidade das quatro estações; as culturas destinavam-se à satisfação das elementares necessidades da vida das pessoas; estas apenas individualmente (com ressalva do fenómeno cooperativo) procuravam o pequeno lucro, normalmente com vista à compra de calçado, vestuário e uma ou outra extravagância. Agricultura, exploração da floresta e natureza integravam um ciclo virtuoso. Não havia incêndios porque não havia matéria combustível. Mais: a matéria combustível era até um bem escasso.

Recordo-me, a este propósito, de, aí pelos meus dez anos, ter assistido de boca a aberta ao pedido formulado por um rendeiro do meu pai, no Norte do país, que quase implorava que ele lhe “vendesse mato” (!). Não estou com isto a fazer a apologia da aurea mediocritas de Bernardim Ribeiro, nem do regresso às cavernas. Apenas quero dar ênfase a uma certa filosofia que então comandava a vida e a actividade rural no nosso país.

Ora, com o advento em força do marketing e da publicidade e a agressividade das campanhas que acompanharam o florescer dos grandes grupos ligados à indústria, comércio e distribuição alimentares, este modo de vida rural do país alterou-se radicalmente. O que aconteceu foi que a agricultura tradicional do país passou a não satisfazer integralmente os desejos alimentares das pessoas (e não apenas as suas necessidades básicas). Paralelamente, com a industrialização e o progresso tecnológico, apareceram novas modas alimentares que rapidamente captaram as novas gerações. Por um efeito de contágio, as grandes massas populacionais, quer no litoral, quer mesmo no interior, e aqui tanto as ocupadas na indústria como as que se passaram para os serviços, deixaram de comprar ao “merceeiro da rua” que trazia os produtos da terra. E, sobretudo, essas massas foram levadas a deixar de pensar, de tão deslumbradas que ficaram com a panóplia de novos produtos que lhe eram colocados “à disposição”, naturalmente condicionadas pela variedade da oferta e pelo baixo custo. Foi tudo isto que contribuiu para a incessante desvalorização dos produtos tradicionais do campo português e para o brutal empobrecimento dos seus agricultores.

Este brutal empobrecimento teve múltiplas consequências: levou ao fim da pastorícia; ao abandono das matas e dos próprios terrenos agrícolas; fomentou a deslocalização das gerações mais novas para os grandes centros; deixou os mais velhos entregues a si próprios e à sua estrita sobrevivência. É exactamente este sector dos agricultores mais velhos, info-excluídos e cilindrados pelas estatísticas da saúde ou da justiça, que uns quantos especialistas querem colocar no pelourinho, por na sua esmagadora maioria se identificar com o dos pequenos proprietários rurais que são acusados de desleixar a limpeza das matas. Hipocrisia esta sem limites, aquela a que de muitos lados venho assistindo na crucificação destes autênticos “refugiados do progresso”, forçados a prolongar o seu “modus vivendi” por o país urbano os ter relegado à sua sorte.

Como é bom de ver, esta geração deprimida foi e é presa fácil do oportunismo ganancioso. Compreensivelmente entregou-se a tentadoras propostas de retorno de dinheiro rápido e a breve trecho ficou cercada pelo seu fim, talvez sem consciência de que estava a entrar numa armadilha que, num prazo mais ou menos longo, lhe iria custar a própria vida. Tratou-se de uma verdadeira eutanásia para os habitantes do Norte e Centro rurais: de uma “morte assistida” pelo Estado. Na realidade, este tinha a obrigação moral de acudir com as alternativas que se impunham, tanto na indispensável subsidiação das limpezas da mata de quem não a podia implementar — e que era a esmagadora maioria dos proprietários — como com a oferta de uma atractiva compensação pelo povoamento arbóreo autóctone que pudesse concorrer com as propostas oportunistas. Mas sempre optou por não o fazer. Aqui radica a dita “imprevisibilidade” das tragédias florestais em Portugal.

Mas a este drama sociológico, acrescem ainda outras ordens de razões para a apregoada “inexplicabilidade dos incêndios” que agora também surge invocada para o caso de Pedrógão. Uma delas tem que ver com a incapacidade da generalidade das pessoas para interiorizar a real dimensão das denominadas “alterações climáticas” no nosso país, incapacidade que conduz a qualificar de extraordinário o que infelizmente no futuro será, se não ordinário, pelo menos bastante provável. Probabilidade que só será impedida se não for drástica e decididamente invertida toda a economia dos solos com aptidão florestal.

A outra é a que diz respeito à sistemática e intrigante falta de esclarecimento público, isento e exaustivo, de todos os efeitos produzidos pela introdução massiva de certas espécies arbóreas não autóctones. Refiro-me aqui não só às consequências que a presença de tais espécies ocasiona nos níveis de humidade e fertilidade dos solos, como às que se podem verificar no meio ambiente, no plano da biodiversidade animal e vegetal. Biodiversidade que certamente interage, não só com as produções agrícolas e a alimentação que delas provém, como ainda no plano da saúde das pessoas e do clima propriamente dito. Não é preciso identificar aqui o problema mais assustador, por de todos ser já bem conhecido. Em Portugal, a sociedade civil nunca se organizou para este debate. Ao contrário do que tenho ouvido, ela (a dita sociedade civil) existe: só que está inebriada pelo espectáculo mediatizado da futilidade.

Urge, simplesmente, dizer que é tempo — eventualmente através das redes sociais — de criar uma ampla plataforma cívica, aberta a todos os sectores do que resta de massa crítica na sociedade civil, destinada a promover esse debate e combate. Para isso há que recorrer aos mais conceituados peritos e estudiosos nacionais e internacionais da matéria (que os há). Com base em dados irrefutáveis, há que desencadear e efectiva influência na sociedade civil e no que resta do poder político sério e interessado sobre as consequências ligadas à perpetuação de um certo estado das coisas. De qualquer modo, parece agora claro para quase todos que os fogos não são explicáveis apenas com o “maluquinho da aldeia”, a “vingança do vizinho” ou, em última análise, com a “lentidão” ou a “incúria” dos tribunais na detenção dos incendiários, chavões que até agora tinham servido “às mil-maravilhas” para tranquilizar as populações. Como não serão o resultado inevitável das futuras “trovoadas secas” que, pelo menos até à data, ainda não são criminalmente imputáveis.  

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