Porto-Lisboa em duas horas e meia... mas só para VIP

As ligações ferroviárias entre as duas principais cidades do país - Lisboa e Porto - dão hoje mais um passo com a chegada do Alfa Pendular. A CP regozija-se com a entrada do país "na alta velocidade". Mas não parece ser tanto assim. O novo comboio demorará mais meia hora a ligar as duas cidades do que o "Foguete" de há 20 anos.

O primeiro comboio pendular entre Porto e Lisboa é inaugurado hoje numa viagem especial com a presença do secretário de Estado dos Transportes, Guilhermino Rodrigues, informou a CP. A empresa diz tratar-se de "um marco na história dos Caminhos de Ferro Portugueses" e que tal representa para o país "a entrada na alta velocidade". Mas o pendular chega com um ano e dois meses de atraso (era para ser estreado durante a Expo 98) e vai demorar mais meia hora a ligar as duas cidades do que o "Foguete" de há 20 anos. Em vez de atingir os 220 Km/hora para que foi concebido, o Alfa Pendular não passará dos 160 Km/hora e, ainda assim, num curto troço do percurso. Tudo porque a modernização da linha do Norte leva, também ela, vários anos de atraso, não se sabendo quando estará concluída.Após a viagem de hoje, que devido à sua característica VIP será feita em apenas 2h30, os primeiros quatro pendulares começarão amanhã a fazer serviço comercial, com os mesmos preços e os mesmos horários dos Alfas (3h30 entre Lisboa e Porto). Estes serão sucessivamente substituídos à medida que a Fiat Ferroviária (empresa que lidera o consórcio, também formado pela Adtranz e Siemens) entregar as restantes unidades.Para este projecto, que ficará sub-aproveitado durante mais alguns anos, a CP investiu 25 milhões de contos. A principal característica dos comboios de pendulação activa consiste no facto de se inclinarem nas curvas (sem que isso resulte perceptível para os passageiros) por forma a não ter que se reduzir a velocidade. Tal significa que o comboio pode manter uma velocidade elevada sem necessidade de frenagem, aumentando o conforto e os ganhos de tempo e de consumos energéticos.Inaugurado em 1856 entre Lisboa e o Carregado, o caminho de ferro português chegou a Elvas e Badajoz antes de ir até ao Porto. Acreditava-se na altura - como ainda hoje quando se discutem as futuras linhas de alta velocidade - que seria melhor ligar Lisboa a Madrid do que dar prioridade ao litoral português. Entre o Tejo e o Douro, a construção da Linha do Norte arrastou-se durante oito anos, avançando por troços com uma frente a sul e outra a norte.De Lisboa, chega-se a Santarém em 1861 e ao Entroncamento no ano seguinte. De Gaia, os trabalhos avançam até Estarreja em 1863, prolongando-se até Taveiro em 1864. O último troço, que ligou as duas partes, foi inaugurado em 7 de Julho de 1864 entre Soure e Taveiro. Durante 13 anos Gaia é a estação término dos comboios que vêm de Lisboa. Só em 1877, com a inauguração da Ponte D. Maria, o caminho-de-ferro cruzou o Douro, ligando finalmente as duas capitais.Os primeiros "rápidos" entre Lisboa e o Porto só serão, contudo, inaugurados em 1899 passando a viagem a ser feita em apenas sete horas. Até então, demorava-se entre dez e treze horas a percorrer os 337 quilómetros que separam as duas cidades. A viagem "ronceira" foi descrita por Pinheiro Chagas, em 1866, da seguinte maneira:"De Lisboa ao Porto dez horas! De Lisboa ao Porto um folhetim! Acendeu-se a máquina; a pluma branca da locomotiva ondeia já por entre as sombras da atmosfera nocturna, a longa fila dos 'vagons' começa vagarosamente a pôr-se em movimento naquela espécie de infernal subterrâneo de Santa Apolónia, para onde eu, novo Dante, sou conduzido por um Virgílio de boné agaloado [o maquinista]. Os vizinhos procuram posição cómoda no fundo da carruagem; uns abrem as portinholas, e metem o nariz nas trevas; outros fecham-nas e metem o nariz no 'cache-nez'! E o comboio vai a pouco e pouco apressando a sua marcha, os outros negros 'vagons', que nos ficam ao lado, parecem despedir-se gravemente dos seus companheiros, e o comboio simula abrir devagarinho as asas sombrias, sacudi-las, espanejá-las; afinal solta um grito, e desfere o voo rapidíssimo. Ei-lo aí vai, o sinistro hipógrifo, vomitando fumo, e fazendo cintilar nas trevas a sua esbrazeada pupila! (...)A noite avança; os meus companheiros citadores de latim, uns ressonavam, outros escabeceavam, outros dormiam de olhos abertos. Trahit sua quemque voluptas. Um espanhol que vinha de Madrid, e que era nosso companheiro desde o Entroncamento, embrulhava-se em cinco mantas e três casacos e ressonava com harmonia tão estrondosa que lhe seria invejada pelo seu compatriota Sancho Pança. Um rio, que eu supus, seria o Mondego, corria a pouca distância do 'railway'. Dali a pouco, divisei ao longe uma porção de terreno iluminada, o comboio aproximou-se rapidamente dessas luzes, afinal parou, e o condutores bradaram:- Coimbra!"Não surpreende, pois, que as sete horas de viagens dos "rápidos" fossem consideradas "vertiginosas" 33 anos depois de Pinheiro Chagas ter feito esta viagem. Nélson Oliveira, investigador da temática ferroviária e vice-presidente da APAC - Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro, conta que estes comboios eram traccionados por locomotivas construídas em França, idênticas às que circulavam na prestigiosa Compagnie des Chemins de Fer du Nord e que eram das mais avançadas que existiam na época. Parecendo enorme, este tempo de viagem, incluía ainda as paragens nas estações para as refeições dos passageiros, pois não existiam carruagens-restaurante. A crer no relato do escritor Lino d'Assunção, parece que a comida em ambiente ferroviário não era da melhor. No seu livro "Seca e Meca" diz que, "na Pampilhosa, come-se à pressa um pão que embucha, carne que resiste, vinho que trava" e que, "na estação de Aveiro, compram-se barrilinhos de mexilhão de escabeche e de ex-ovos moles".O início do século XX é pródigo em progressos tecnológicos nas locomotivas a vapor. Apesar da má situação financeira, a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, e mais tarde a CP, mantém na Linha do Norte níveis de investimento em máquinas e carruagens que não destoam do que melhor havia no resto da Europa.Em 1906 são adquiridas em França cinco locomotivas mais potentes para assegurarem as ligações entre Lisboa e o Porto. Em 1911 são encomendadas, desta vez à fábrica alemã Henschel & Sohn, mais 15 locomotivas, estas capazes de alcançar os 120 Km/hora e podendo, assim, reduzir o tempo de viagem de sete para cinco horas e meia.Até ao fim dos anos 20, os passageiros viajavam em carruagens de madeira, que iam desde os bancos de madeira da 3ª classe até aos aveludados compartimentos da 1ª classe. Após a I Grande Guerra, Portugal recebe da Alemanha, a título de compensação, as primeiras carruagens em metal. São mais confortáveis, mas também mais pesadas e as máquinas revelam-se incapazes de cumprir os horários. São, por esse motivo, adquiridas em 1925 as maiores locomotivas a vapor que circularam em Portugal - as Pacific. O tempo de percurso não se reduziu, mas viaja-se agora com mais conforto entre Lisboa e o Porto do que nas velhas carruagens de madeira.O novo salto qualitativo será dado em 1940 com a compra aos Estados Unidos de carruagens Budd, em aço inoxidável, que fariam a composição do famoso "Flecha" que ligava Lisboa à Cidade Invicta em pouco mais de cinco horas. A tracção a "diesel" começa, entretanto, a substituir os velhos comboios a carvão. A nova tecnologia é mais rápida e mais limpa e permite reduzir a viagem para quatro horas e cinquenta minutos.O tempo do vapor entrara no ocaso, mas deixou marcas indeléveis na literatura da época. Em "País das Uvas", Fialho d'Almeida descreve assim um comboio a vapor: "Vêem-se os olhos da máquina luzindo laterais, como os dos peixes e os dos grandes sáurios; e o faulhar da máquina sobre a via, e o penacho de fumo, que a labareda doira, como uma crina de cavalo danado e formigando. Ele aproxima-se e, na curva do caminho, desenrola o corpo de anelado, feito de 'vagons' de ferro que se chocam, fosforejam, zumbem, fumando, bramindo num hausto de relâmpago que atravessa a noite lôbrega das matas."Em 1954, estreou-se um serviço que revolucionou a viagem entre Lisboa e o Porto - o do Foguete, composto por automotoras a "diesel", de marca Fiat, que percorriam os 337 quilómetros em apenas quatro horas e meia. "Estas automotoras eram tão luxuosas que dispunham de ar condicionado e de serviço de refeição no lugar", diz Nélson Oliveira, lamentando, enquanto dirigente da APAC, que a única composição sobrevivente do Foguete esteja semiabandonada na estação de Estremoz (ver caixa).A introdução das primeiras carruagens produzidas na Sorefame nos anos 60 e a electrificação da Linha do Norte ditam a morte das Fiat, substituídas agora pela tracção eléctrica, que diminui a viagem para quatro horas e meia. Em 1974, com a compra de locomotivas Alsthom, o tempo de percurso é reduzido para quatro horas e cinco minutos. As novas máquinas são rápidas, mas a linha está em tão mau estado que vai ser necessário esperar pela sua renovação integral, feita na década de 70.Em 1980, com troços capazes de suportar os 140 Km/hora e uma grande parte da linha apta para os 120 Km/hora, a distância entre o Tejo e o Douro é vencida em três horas. "São na época os comboios de maior velocidade comercial na Península Ibérica", sublinha Nélson Oliveira. Com a entrada em serviço das carruagens Corail, é inaugurado em 1986 o serviço Alfa que durou até hoje. As três horas de viagem são, porém, dificilmente mantidas, obrigando os maquinistas a um autêntico rali numa viagem entre Lisboa e o Porto a fim de manter o horário previsto.A modernização da Linha do Norte, iniciada há três anos, veio complicar mais as coisas, devido aos afrouxamentos que se revelaram fatais para o cumprimento do horário. Incapaz de o cumprir, num cenário de obras prolongadas, e após um braço de ferro com a Refer (Rede Ferroviária Nacional), a CP abandona as três horas e aceita "uma política de verdade" nos horários da Linha do Norte. Para o actual horário de Verão, que teve início em 30 de Maio, os Alfas passaram a demorar mais 30 minutos entre Lisboa e o Porto.Por ironia, os pendulares hoje inaugurados, que podem circular a 220 Km/hora, terão exactamente a mesma marcha dos velhos Alfa e estreiam-se com uma má imagem, que em nada se compara com os seus antecessores, também de marca Fiat, que em 1953 inauguravam o revolucionário Foguete.Apesar das sucessivas inovações aplicadas aos "rápidos", a Linha do Norte continuava com um lado atrasado e obscuro, feito de composições lentas que serviam estações intermédias e demoravam uma eternidade no seu percurso. Um artigo de Abreu e Sousa, no "Primeiro de Janeiro" de 26 de Agosto de 1951, descreve com muito humor e ironia, o "suplício, cruel e desumano" de uma viagem de Lisboa para o Porto num comboio-correio: "Não concebo uma tortura maior. Não há prazer de viajar que dê coragem a um mísero mortal para suportar doze horas encafuado num cubículo onde estão continuamente a queimar-lhe os olhos as faúlhas da máquina, a asfixiá-lo a fumarada que a mesma exporta e a picar-lhe as pernas e as zonas adjacentes, as crinas dos bancos pseudo-estofados. O suplício do comboio correio é horrível, trágico, monstruoso."Insurgindo-se contra as constantes paragens, o articulistas escreve, mais à frente: "A máquina suspira fundo, procura desentorpecer as rodas atacadas de reumatismo gotoso, dá um grito com as dores e o 'correio' parte. Chegou a hora de o supliciado sentir o seu tormento aumentar. E a paciência do infeliz, já esgotada, é cruelmente martirizada com paragens de dez em dez minutos em frente de apeadeiros que oferecem o deslumbrante panorama de labregos a olhar, espantados, para a máquina, e de gentilíssimas sexagenárias, de chinelos, vendendo arrufadas graníticas e barricas de ovos moles sem o certificado de origem."

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