Comboio da morte

Uma morrinha persistente caía sobre a cidade de Compiègne, às 9h15 do dia 2 de Julho de 1944, quando o comboio n.º 7909 iniciou a sua viagem em direcção ao campo de concentração de Dachau. A bordo dos seus 22 vagões seguiam presumivelmente 2152 pessoas, incluindo um único português: Bernardino da Silva, nascido a 17 de Março de 1923, em Santo Tirso. As condições insuportáveis a bordo deste comboio, com os prisioneiros encerrados, sem ar, sob um imenso calor e assolados pela sede, causaram um elevado número de mortos. Até hoje, o número de vítimas mortais não é certo, havendo quem defenda que pelo menos 900 pessoas morreram, enquanto outros se ficam pelos 520. Um deles foi Bernardino da Silva. O livro Le Bataillon d’Eysses tem um capítulo dedicado a este transporte, que ficou conhecido como Comboio da Morte, com uma relato na primeira pessoa sobre o que aconteceu a bordo.

2 de Julho

9h15

Compiègne

O comboio deixa a estação ferroviária de Compiègne, sob uma morrinha matinal. A bordo vão, sobretudo, prisioneiros políticos. Estima-se que cerca de cem homens estivessem apinhados em cada um dos 22 vagões.

10h05

Soissons

O Comboio da Morte foi o quinto a deixar a estação de Compiègne depois do desembarque das tropas Aliadas na Normandia. Na primeira parte do trajecto a viagem é lenta e cheia de paragens. Às 10h05, já sob um sol que promete ser escaldante, o transporte pára em Soissons. O relato do médico Francis Rohmer, que seguia a bordo de um dos vagões, é reproduzido no livro Le Bataillon d’Eysses: “O calor torna-se sufocante, os raios de sol cada vez mais quentes caem sobre os vagões, que escaldam. A cada paragem, a temperatura eleva-se no interior. Os corpos escorrem suor, as respirações são ofegantes. O silêncio enche todo o vagão, já ninguém tenta ser simpático, todos estão sonolentos. Mas alguns agitam-se, sentimos a tempestade aproximar-se, os nervos estão à flor da pele e a angústia cresce lentamente. […] Acabamos de passar Soissons; o comboio muda constantemente de direcção, passa de uma via para outra (por causa dos bombardeamentos, as vias são frequentemente desviadas). O sol é implacável e será assim durante todo o dia. A sede é terrível…”

11h05

Saint-Brice

Junto a Saint-Brice, a linha é sabotada e o comboio é obrigado a parar até às 14h. Durante estas três horas, os vagões são deixados ao sol, com os prisioneiros encerrados lá dentro. A tragédia começa a desenhar-se. Conta Rohmer: “Subitamente, um grito desesperado, medonho: ‘L. morreu. Parecia estar a dormir, mas eu sacudi-o para o acordar, e ele tombou.’ X., que acabou de fazer esta descoberta, olha o corpo, desvairado. Não pode acreditar nesta desgraça. [….] Já devia estar morto há algum tempo e ninguém tinha reparado. Não demoramos a descobrir o segundo morto… A tragédia desenrola-se, acelerando a cada minuto que passa! Em duas, três horas, 74 dos nossos camaradas vão morrer de calor, asfixia e falta de água.”

14h35

Reims

O comboio chega à estação de Reims. Por esta altura, a Fundação para a Memória da Deportação estima que pelo menos cem pessoas estarão já mortas. Após uma paragem de 35 minutos, a viagem é retomada, mas para ser interrompida pouco depois.

15h20

Bétheny

Em Bétheny, uma nova sabotagem na linha causa o descarrilamento da locomotiva. Os vagões são reconduzidos por um tractor até à estação de Reims, a curta distância.

15h50

Reims

De regresso a Reims, os vagões são deixados ao sol, enquanto se aguarda a chegada da locomotiva. Alguns médicos apelam à intervenção dos serviços sanitários e os nazis acedem a entreabrir as portas. Francis Rohmer relata mais um passo do horror em que se transformou a viagem: “O ar falta-nos cada vez mais, os sinais de asfixia precipitam-se; os corpos escorrem, a atmosfera está carregada de suor, as cenas de loucura e de delírio começam. Uns gritam desesperadamente por socorro e atiram-se com violência contra a lateral do vagão; outros arquejam e agitam-se cada vez mais… […] Um dos prisioneiros, de Riom, precipita-se, louco furioso, sobre M. e esmurra-o em pleno rosto, fazendo correr o sangue. Ele cai para trás, o outro atira-se sobre ele, os corpos rolam, ouvimos os gemidos de dor. A loucura toma conta da maior parte do vagão. [Os homens] Atiram-se uns sobre os outros, pontapeiam-se, atacam-se com garrafas, estrangulam-se. Uns atrás dos outros caem, exaustos, e morrem enredados, sem forças para se libertar.” O comboio só vai retomar a viagem à noite, deixando a estação pelas 20h03.

3 de Julho

11h45

Revigny

O comboio chega a Revigny, depois de ter passado, pelas 2h, por Vitry-le-François. Por esta altura, os cadáveres começam a decompor-se e os alemães reorganizam o transporte. Os prisioneiros são retirados dos vagões e obrigados a transportar os corpos dos colegas para composições entretanto libertadas para o efeito. Os que estão moribundos são colocados sobre os carris e mortos com uma bala na cabeça. Os sobreviventes podem, finalmente, beber alguma água, já que recomeçou a chover. A viagem é retomada pelas 15h05.

21h50

Novéant

A violência regressa assim que o comboio retoma a marcha. “As cenas de delírio recomeçam; o vagão não é mais do que uma cabana cheia de loucos que se estrangulam, que ensaiam novos ataques, que se agridem com garrafas, que abrem as veias, depois tombam esgotados, moribundos sobre aqueles que, sonolentos, abafam sobre os seus corpos”, relata o médico Francis Rohmer. Pelas 21h50, o transporte pára na gare de Novéant. Depois da anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha, Novéant está transformada em estação de fronteira. O comboio permanecerá ali até às 7h15 do dia seguinte.

4 de Julho

7h35

Metz

O transporte pára em Metz até às 10h10, antes de prosseguir viagem.

11h56

Sarrebourg

Nova paragem, desta vez em Sarrebourg. As portas dos vagões são, novamente, abertas e elementos da Cruz Vermelha distribuem sopa e água, mas a assistência é interrompida bruscamente pelos alemães que voltam a ordenar a partida do comboio. Em Le Bataillon d’Eysses, o relato de Rohmer continua: “Mais de metade dos ocupantes do vagão morreu…”.

15h18

Estrasburgo

De novo em andamento, o Comboio da Morte passa por Estrasburgo, rola a noite toda. “Caio numa espécie de coma. Quando venho a mim o calor é menos tórrido, o sol está quase a pôr-se e o comboio anda mais depressa. P. sacode-me, é preciso fazer a chamada. Apenas 24 respondem… Vamos estender-nos… Durante toda a noite R. vai impedir-me de resvalar entre os cadáveres e de asfixiar entre eles. A frescura da noite é doce. Dormimos sobre os cadáveres ainda quentes”, escreve o médico.

5 de Julho

8h

Estugarda

A viagem está perto do fim e o comboio não pára, passando por várias localidades alemãs como Estugarda, Ulm (9h10) e Augsburg (10h).

11h

Munique

Última paragem antes do destino final. Até às 12h20, o comboio pára em Munique. Depois, inicia o último trecho do caminho, com os seus vagões carregados de vivos e mortos.

16h30

Dachau

Os portões do campo de concentração de Dachau abrem-se para receber o Comboio da Morte. Os cadáveres são retirados das composições e enviados directamente para o crematório, sem qualquer registo da sua chegada ao campo.