Nesta casa “o que sobra é o que honra a mesa”

De norte a sul, estivemos com famílias numerosas e famílias mais pequenas. Mostramos as diferenças gastronómicas regionais e famílias que vivem este ritual. Começamos a série Uma Família à Mesa com os Alexandrinos, em Vouzela.

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O almoço com os os Alexandrinos Paulo Pimenta
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Na cozinha de Lucília Mendes Alexandrino há um forno e um fogão a lenha. O forno está embutido na parede, em pedra típica da Beira, que se acende mais no Inverno; o fogão tem várias gavetas, em que umas guardam a lenha a arder, outras servem para assar o porco e vitela com batatas como hoje. De Verão ou Inverno aqui a comida cozinha-se a lenha. “O sabor é totalmente diferente”, garantem-nos. Mas também há uma Bimby, usada pela filha Catarina para lasanha, empadão de carne, leite-creme, mousse de chocolate. Na Bimby, Lucília não mexe.

Lucília, de 65 anos, ajudada pela cunhada Isilda Alexandrino, de 58, está desde as 10h a preparar o almoço deste primeiro domingo de Agosto para a família: os dois irmãos de Lucília, António e Agostinho Alexandrino, a sobrinha Inês (filha de Agostinho e de Isilda), as duas filhas, Rita e Catarina, o genro António José, e os dois netos, Mariana, sete anos, e Joaquim, quatro meses. Da família mais directa faltam os três filhos de António, de 40, 34 e quase 32 anos.
 
Batemos à porta desta moradia em Quintela de Queirã (Vouzela) pelas 10h30, como indicado. Atravessamos o pátio, passamos pelo terreiro coberto da churrasqueira. Levam-nos para a cozinha, um espaço que fica separado da casa principal, onde está também a sala de jantar e um escritório. Catarina, de 31 anos, põe os guardanapos na mesa, onde uma toalha aos quadrados azuis e brancos serve de protecção a 10 lugares (oito para a família, mais dois para os repórteres). A toalha combina com a parede pintada de azul, onde está pendurado um quadro com uma natureza-morta.
 
Às traseiras, Lucília vai buscar couve, tomates, cenouras, batatas… Faz questão de produzir o que come, mas diz que fica mais caro do que comprar. “É a tradição e ter a terra cultivada”, explica. “Às vezes não é só o dinheiro, os olhos também comem, eu gosto de ver. Estou habituada à agricultura, os meus pais eram agricultores, e a gente gosta de ver aquelas coisas bonitas a nascer, a verdura natural.”
 
Começou de manhã a fazer as sobremesas, uma espécie de sonhos de abóbora e aletria. Chegámos quando estavam a preparar o cozido à portuguesa, outro prato além do assado de um almoço que vai incluir entradas como orelheira de porco ou rissóis e uma sopa com feijão pilado, pão ensopado, repolho e caldo de carne. Comida não pode faltar: “O que sobra é o que honra a mesa, porque é sinal que houve fartura; toda a gente ficou satisfeita e sobrou”.
 
A sopa, a vitela e a aletria são uma tradição que vem da casa dos pais de Lucília. “Quer queiramos, quer não, a casa dos nossos pais é uma escola que temos para a vida. Vamos sempre buscar o que se aprendeu junto deles. Há momentos que a gente está a ver o que se passou. Pode crer”, comenta.

Reproduzir memórias
Em casa dos pais de Lucília “não havia ralhetes, não havia álcool, era gente certinha”, foi o que sempre tentou transmitir às filhas. Eles viviam do campo, de trabalhos agrícolas – criavam animais, vendiam azeite, batatas, cebolas, etc. “A minha mãe não sabia ler nem escrever. Os meus avós tinham dinheiro, mas naquele tempo, sabe como é, ninguém os mandava para a escola. O meu pai tinha a quarta classe, mas era uma pessoa avançada: via o futuro e não tinha medo de andar para a frente.”
 
Hoje, domingo, Lucília está a reproduzir o que viveu com os pais e com os avós. A memória surge: “Ainda parece que sinto aquele cheirinho...”
 
Os avós eram agricultores e depois “eram do tempo da exploração do volfrâmio, que deu de comer a muita gente”. A região tinha muita pobreza, comenta. “Lembro-me muito bem daquela juventude que trabalhava na vida agrícola. Muitos iam lá porque comiam. Os pobres vinham pedir às portas, começavam por rezar. E a dona de casa vinha com uma sopa.” Pobreza assim já não vê na região. “A Segurança Social vai ajudando. As reformas são poucas, mas vai ajudando. Nos tempos atrás era zero.”
 
Professora na reforma, Lucília ensinou durante 30 anos, 24 deles na Telescola, sistema que serviu a muita gente nas aldeias isoladas. Tem ainda um atelier de artes decorativas na Associação do Grupo de Cavaquinhos e Cantares à Beira, grupo que tem gravado vários discos. Às quintas-feiras e aos sábados trabalha no atelier a pintar telas e a fazer recuperação de peças – como panelas da manteiga do porco, “as arcas das pessoas antigas”, frigideiras, potes de resina, etc.
 
O tempo passa rápido e mais rápido para Lucília e Isilda que não param, e todo o dia. Não as iremos ver sentadas tão cedo. Mesmo quando as travessas estão na mesa, há outra coisa a fazer na cozinha. “É sempre assim”, diz Rita, que agora vive entre Viseu, Quintela de Queirã e Bodiosa. É sempre assim em casa da mãe ou em casa da tia Isilda – as reuniões familiares “rodam” entre as duas casas, uma ajuda a outra.
 
“Moralmente não é que tenha muita vontade”, desabafa Lucília, que perdeu o marido em Setembro do ano passado. Joaquim Mendes, professor, era presidente da Junta de Freguesia de Queirã e foi levado aos 62 anos pelas chamas de um incêndio quando tentava salvar a carrinha da junta (ainda esteve hospitalizado uns 20 dias). A família ainda está a recuperar, “não é fácil”, mas, diz Lucília, “a melhor homenagem que podemos fazer é dar continuidade à obra dele”.
 
Está a tentar que a filha Rita pegue em projectos que ele tinha, como criar a monografia da freguesia. Estiveram casados 38 anos, com namoro incluído foram 42. Lucília cita muitas vezes o marido. Que dizia: “Quanto mais ilusões tivermos, quanto mais iludirmos a vida com ilusões, melhor é. Porque se formos a pensar na realidade, o nosso fim é morrer. Se estamos entretidos, estamos esquecidos, a viver.”

Mulheres são sacrificadas
Chega Rita com o filho ao colo, Mariana já andava a cirandar pela cozinha. A avó diz que faz a sopa para Joaquim. “Estou a poupá-las”, diz com um sorriso. Não que as filhas estejam mal habituadas. “Se não soubermos, hoje, fazer de tudo um pouco, estamos mal”, diz Rita, que elogia a colaboração do marido em casa. Ao almoço, os homens ficam sentados à mesa, algo normal. “As mulheres são sempre as sacrificadas”, reconhece António, o mais velho dos manos Alexandrinos.
 
Rita, de 37 anos, também é professora, mas no ensino secundário e na educação especial. “Mais do que nunca” vem agora a casa da mãe, depois da morte do pai. “Esta é sempre a base familiar. Com a minha sogra também era assim. Mas entretanto morreu, ela era a matriarca e as coisas mudaram.”
 
A comida serve de veículo para a ligação familiar, concorda Rita, que brinca: “Não é à mesa que se fazem os grandes negócios?” Lucília: “Não há filosofia com barriga vazia. Era um ditado que o meu marido dizia muitas vezes. Quando cozinho e convido pessoas, os momentos são vividos para essas pessoas – se souber do que elas gostam, faço com mais gosto.”
 
António, o líder da família como se apresenta, junta-se à conversa. Com quase 70 anos, é professor aposentado no ensino secundário, e agora dedica-se à música (toca órgão e piano e dirige um grupo de música popular). “Em termos de família, de maneira geral, o mais velho tem um peso mais forte”, analisa. Isto é das coisas que fazem sentido conservar, defende, “até por uma questão de organização social”. “A idade não deveria ser um posto, mas acaba por ser aquilo que faz a diferença quando se entrega a braçadeira do capitão de equipa. Obviamente que muitas vezes o líder num clã pode ser mais novo, se essas qualidades de liderança se impõem naturalmente.” Aqui na família Alexandrino “aquele que parece que lidera, lidera mesmo”. Mas ele nada faz para isso. E a sua posição não vem do facto de ser homem, vem do facto de ser mais velho. “Um líder, quando é líder, impõe-se naturalmente, não tem que ser por decreto.”
 
Na geração anterior, em casa dos avós – paternos e maternos – quem liderava eram as mulheres. “Os meus avós homens aceitavam e as coisas funcionavam com o dedo delas.” Por exemplo, foi a mãe do pai dele quem impôs que os filhos fossem à escola, algo que não era natural naquele meio, naquele tempo.
 
Decisões que envolvem os Alexandrinos são debatidas entre os três irmãos: juntam-se, bebem um copo, “se for preciso alguém dá um murro na mesa e a mesa aguenta bem”, e quando não se chega a acordo à primeira “a gente adia, arruma a ordem de trabalhos e continua noutra altura”. O que caracteriza os Alexandrinos? “Uma certa tenacidade perante a vida”.

Vontade para se entender
Na cozinha, Isilda e Lucília continuam o trabalho, tenazes. Chega, perto das 13h, Agostinho, de 68 anos. Hoje é reformado, mas a sua vida foi diferente: esteve em Angola em serviço militar durante dois anos e meio, voltou para Portugal, foi para a Alemanha trabalhar durante mais de 14 anos numa empresa de pneus – regressou definitivamente em 1984, e dedicou-se à agricultura (teve também uma vacaria).
 
António tem o acordo dos irmãos em relação ao seu papel. “A velhice é um posto”, diz a sorrir Lucília, acrescentando que ele “tem uma certa formação” e “outros conhecimentos”. “Quando é preciso, recorrermos uns aos outros e ele tem obrigação de dar ajuda. Aliás, todos nós temos: é um elo.” Entre cargos de direcção, António foi presidente da Câmara de Vouzela por 15 meses logo a seguir ao 25 de Abril. “Não é que a gente tenha que estar de acordo em tudo, nem seria saudável, mas até quando faleceram os nossos pais e tivemos que pensar em partilhas a gente foi-se sempre entendendo. O entendimento e a vontade das pessoas em se entenderem é o mais importante. Quando há esta vontade, tudo corre melhor e ninguém pensa em liderança – mas ela funciona.”
 
O mais importante nestas reuniões, intervém de novo António, é o simples facto de uns e outros se verem: “Muitas vezes o que falta às pessoas é o elo que lhes lembre que, por mais voltas que dêem, pertencem à mesma matéria, espiritual, intelectual e não só.”
 
Agora finalmente à mesa, entre o caldo, o cozido, a carne assada e a sobremesa, Lucília fala da união da família. Está a uma das cabeceiras, a mais perto da cozinha. António ficou na outra. “Se às vezes há isto ou aquilo, temos que nos perdoar uns aos outros. De outra forma – se tu me farpas, eu vou-te farpar – ninguém vai a lado nenhum.”
Inês: “O segredo é mesmo a refeição. Se não fosse a refeição, era difícil juntarmo-nos, eram visitas pontuais.”
 
António José (Tozé) observa que comer pratos tradicionais é importante porque é um saber que se transmite de geração em geração. “São sempre sabores de recordação para nós”, conclui Inês.
 
Deixamos a mesa já a meio da tarde, com Lucília e Isilda de regresso aos tachos e aos pratos. Se for como habitualmente, os Alexandrinos continuarão no convívio pela tarde adentro.

Receita de cozido e carnes assadas
Põe-se 750 gramas de cenoura, 1,5kg de batata e 1,5 kg de vitela, 1,5 kg de costeleta de porco, duas ou três chouriças, um frango ou galinha a cozer. Não leva tempero, à excepção de um fio de azeite no final, à escolha.

Vitela e porco assados no forno de lenha Deixam-se as carnes com sal e um pouco de vinagre de um dia para o outro. No dia seguinte, temperam-se com alho picado, azeite, sal, louro, colorau, salsa e vinho branco. Fica a marinar. Leva-se ao forno com as batatas descascadas numa travessa onde se coloca água quase até cobrir as batatas. Acrescenta-se azeite.

Chouriça caseira (cerca de 24 chouriças) Sete quilos de carne de porco em vinha-d’alhos (três litros de vinho branco, oito dentes de alho e sal), tudo bem temperado; vai-se mexendo; no Verão, deixa-se estar uns três dias, no máximo, fora do frigorífico; no Inverno, pode estar uma semana; enchem-se as tripas do porco com esta carne cortada aos bocados. Penduram-se as chouriças sobre uma fogueira (um balde por dia), uma de manhã e outra à noite, durante pelo menos três dias.

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