Fogos invisíveis

Há por aí muitos “fogos” que não se lhes vê o “lume vivo”, porque “só” fazem arder ou deixam arder.

No tempo em que Camões viveu, século XVI, talvez houvesse a arder mais amor e menos fogos. Então a comburência e a combustibilidade do “progresso” não impediam a Natureza de, naturalmente, cuidar de si própria.

Algumas “ignições” florestais dessa época faziam parte do ecossistema que, agora, está a ser sistematicamente destruído por outros sistemas, sobretudo o sistema de(os) mercado(os). Quando muito, eram “contrafogos” com lenha empilhada nos autos de fé da Inquisição.

Aliás, agora, século XXI, talvez seja ainda muito a “santa” estupidez e a “santa” cupidez que atearam estes “contrafogos” da Inquisição que, nas matas e pinhais (e escritórios…), ateia alguns incêndios florestais. E se já não é a “justiça” dos autos de fé que agora faz arder, é a (pouca) fé nos autos da Justiça que vai “ardendo”.

É certo que agora o amor já não é tão “ardente” nem “arde” durante tanto tempo (às vezes, só uns dias, uns meses, vá lá, uns anos) como há 500 anos, quando Camões viveu. Mas isso não quer dizer que não haja incêndios.

Neste ano, Vila Nova de Cerveira, Mangualde, Covilhã, Gouveia, Penacova e noutras localidades. Mas, todos os anos, por todo o país, devastadores incêndios que, pelo menos no Verão, aterrorizam as pessoas.

Todos vimos, “claramente visto, o lume vivo” desses incêndios. Viram-no mais, sentiram-no mais no seu âmago, aquelas pessoas que mais próxima e directamente com ele sofreram, vendo ameaçada a vida, a integridade física, a casa, os haveres. E também todos os que no terreno o combatem. A alguns e algumas destes(as), bombeiros(as), o  lume, de tão “vivo”, estropiou-os fisica e mentalmente ou roubou-lhes mesmo a vida.

É pouco provável que todos estes incêndios tenham sido ateados por amor, por esse “fogo que arde sem se ver”. Mas, se não foi o “fogo” do amor, não terão sido outros “fogos” que, “sem se ver”, durante todo o ano (e não apenas no Verão), de alguma forma, “ardem”, desencadeiam e ou alimentam esses incêndios?

Na realidade (da qual as metáforas fazem parte), há por aí muitos “fogos” que não se lhes vê o “lume vivo”, porque “só” fazem arder ou deixam arder.

Arde sem se ver o abandono da agricultura, dos terrenos de cultivo e da floresta, por dificuldades de suporte económico e social da generalidade dos agricultores, pelo envelhecimento acelerado da população, pela progressiva desertificação do interior rural com falta de condições de emprego e de acesso local, fácil e em devido tempo, aos serviços públicos essenciais.

Arde sem se ver o confronto entre a desertificação e abandono do interior e a sua esporádica sobreocupação por “férias rurais” e actividades muitas vezes ecologicamente agressivas e perigosas (porque sem o adequado e oportuno planeamento, enquadramento, organização e controlo preventivo) que, no Verão, se desenvolvem no interior, no “convívio” (que não é a mesma coisa que convivência) com a Natureza.    

Arde sem se ver a falta de ordenamento florestal e consequente falta de biodiversidade preventivamente adequada das espécies, bem como a clarificação da sua propriedade e localização precisas.

Arde sem se ver a falta de limpeza das matas pelos seus proprietários e, vendo-se ainda menos, arde isto ainda mais quando o proprietário é o Estado.

Arde sem se ver a falta de fomento e incentivo do Estado à organização colectiva dos pequenos agricultores para, conjuntamente, limparem e reordenarem os seus pinhais e matas e criarem neles condições adequadas de acesso aos bombeiros e aos respectivos meios de combate a incêndios.

Arde sem se ver a negligência de muitos de nós com a “prisca”, os foguetes, a queimada das silvas e do lixo ou a churrascada “ecológica”.

Arde sem se ver a negligência, a mente doente ou a ganância criminosa de interesses que desencadeiam actos incendiários.

Arde sem se ver muita legislação e regulamentação directa ou indirectamente relacionada com a protecção civil e com a floresta e arde isto ainda mais vendo-se menos porque muita dessa legislação e regulamentação é “letra morta”, está “apodrecida” (desfasada da realidade) ou é tão confusa e labiríntica que ela própria é uma verdadeira “floresta desordenada”.

Arde sem se ver, mesmo chovendo a cântaros, o que, em matéria de análise, planeamento, organização, processos e meios de prevenção, do Outono à Primavera não é feito pelas pessoas, pelas instituições, pelas autarquias, pelas autoridades e pelo Estado de forma a que no Verão seguinte se veja menos algo a arder.

Arde sem se ver o bolso de nós todos, cidadãos contribuintes, com o pagamento das despesas de muitas dezenas de milhões de euros gastos todos os anos no combate a incêndios.

Arde sem se ver o (des)aproveitamento mediático dos incêndios, com uma Comunicação Social mais espectacular que reflexiva, mais mercantil do que pedagógica, mais comercial que social.

Arde sem se ver o (des)aproveitamento político(queiro) dos incêndios, dificultando uma análise crítico-construtiva concertada, consequente, consistente e sustentada, orientada para a sua prevenção estrutural.

Luís Vaz, aí em cima, “lá no assento etéreo onde subiste”, el-rei D. Duarte, também já aí contigo, eloquente como sempre foi, ter-te-á já aconselhado (assim escreveu no seu Livro dos Conselhos) que, “se puderes olhar, vê; se puderes ver, repara”. Então, com certeza, já reparaste em todos estes fogos que, cá em baixo, “ardem sem se ver”.

Pelo que se sabe, não foste bombeiro. Foste, sim, (o) Poeta. Mas, afinal, nestes tempos de tanta teoria e prática de ultraliberalismo, do “cada um que se amanhe”, pela sua solidariedade, desinteresse pessoal e abnegação, todos(as) os(as) bombeiros(as) são, como tu, uns “líricos”, uns “poetas”.  E “poetisas”.

Por isso — apelamos-te não poderás assumir-te como poeta-bombeiro (ou vice-versa) e arranjares maneira de vir cá “abaixo” (talvez num helicóptero Kamov) e, num Conselho de Ministros, numa reunião magna da Protecção Civil, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas ou da Associação Nacional de Municípios, numa assembleia municipal ou até na televisão (pode ser num Prós e Contras), mandares uns berros garantindo que vistes, “claramente vistos”, todos estes fogos que ardem sem se ver, todos estes fogos invisíveis?

Inspector do trabalho aposentado e dirigente de uma associação humanitária de bombeiros voluntários

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